Da "degradação" nos EUA aos "progressos" em Angola: Human Rights Watch apresenta relatório anual

A organização não-governamental apresentou nesta quinta-feira o seu relatório anual sobre a situação dos Direitos Humanos em todo o mundo.

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Reuters/DANISH SIDDIQUI

A organização não-governamental Human Rights Watch (HRW) apresentou nesta quinta-feira o seu relatório anual sobre a situação relativa aos Direitos Humanos, referente ao ano passado, em todo o mundo.

Da degradação verificada nos Estados Unidos, ao crescimento do combate contra líderes autoritários ou aos problemas que ainda se verificam em Moçambique, são várias as situações reportadas pela organização neste documento.

Degradação nos EUA em 2018

A HRW adverte para a degradação do respeito pelos Direitos Humanos nos Estados Unidos da América, devido à justiça discriminatória e à política interna e externa de Donald Trump em 2018.

Entre os factos que apontam para situações preocupantes de condições de Direitos Humanos estão as políticas anti-imigratórias, mandados de prisão em larga escala, sistema de justiça racista ou discriminatória e retirada de colaborações com autoridades e organizações internacionais.

Mais de dois milhões de pessoas estão nas prisões norte-americanas e cerca de quatro milhões em liberdade condicional, diz o relatório.

Trinta Estados norte-americanos continuam a permitir a pena de morte, indica a HRW, com um número de 21 condenações à morte aplicadas até finais de Novembro, em Estados do sul e do centro-oeste, das quais 11 execuções aconteceram no Texas.

A Human Rights Watch considera que as "disparidades raciais penetram todas as partes do sistema de justiça criminal" e continua a existir "discriminação racial no uso da força, detenções e revistas no trânsito pela polícia".

A população negra nos Estados Unidos é de 13%, mas 40% dos presos são negros, o que faz torna os suspeitos de raça negra terem cinco vezes mais probabilidades de serem presos do que os brancos.

Diferenças no tratamento de pobres pelo sistema de justiça também são visíveis, indica a HRW, dando o exemplo de pessoas em prisão preventiva que não têm recursos monetários para pagar fianças e ficam encarcerados até aos julgamentos.

A organização observa também a existência de crimes de ódio no território dos EUA, destacando três ataques no mês de Outubro: o tiroteio na sinagoga de Pittsburgh que matou 11 pessoas, o envio anónimo de explosivos a 12 figuras do Partido Democrata e a morte de duas pessoas afro-americanas numa mercearia em Louisville.

"Os Estados Unidos continuaram a andar para trás em direitos humanos, em casa e fora, durante o segundo ano da administração do Presidente Trump" é a frase que inicia o texto da Human Rights Watch sobre os Estados Unidos da América.

Batalha contra líderes e regimes autoritários "está a ganhar cada vez mais força"

De acordo com o relatório, "novas alianças de governos que respeitam os Direitos Humanos, muitas vezes estimuladas e unidas por grupos cívicos e pelo público, criaram uma resistência cada vez mais eficaz".

Em entrevista à agência Lusa, Kenneth Roth, director executivo da HRW, revela que a oposição aos líderes e regimes autocratas tem surgido muitas vezes de onde menos se espera.

"Poderíamos pensar que a defesa dos direitos humanos viria de países como os Estados Unidos, Reino Unido ou França, mas, na verdade, eles têm estado ausentes. [O Presidente dos EUA, Donald] Trump está muito ocupado a acolher autocratas em vez de os combater, o Reino Unido está totalmente absorvido pelo 'Brexit' e o presidente francês, [Emmanuel] Macron, tem falado muito, mas feito muito pouco", admite Roth.

O documento, com o título "Ditadores enfrentam cada vez mais resistência", que analisa as práticas de Direitos Humanos em mais de 90 países, escreve que a resistência provém de "coligações de estados pequenos e médios e de aliados não tradicionais", mas também de "grupos cívicos ou da população geral".

"Em muitos casos, o público liderou a resistência nas ruas. Grandes multidões em Budapeste protestaram contra as medidas de Orban de fechar a Central European University, um bastião académico de investigação e pensamentos liberais. Dezenas de milhares de polacos ocuparam as ruas várias vezes para defender os tribunais das tentativas do partido no poder de minar a sua independência. Várias pessoas nos Estados Unidos e dezenas de empresas protestaram contra a separação forçada de crianças imigrantes dos seus pais por parte de Trump", exemplifica o documento de 690 páginas.

Ao contrário dos ditadores tradicionais, "os actuais autocratas surgem de ambientes democráticos", sustenta o relatório anual da organização não-governamental.

Populismo cresce na Europa e leva a "abordagem oportunista" contra migrantes

Os partidos populistas influenciaram a política europeia em 2018, ano no qual se assistiu a uma "abordagem oportunista" contra os migrantes no seio da União, nomeadamente em Itália, Hungria e Áustria, revela um relatório da Human Rights Watch.

Segundo o relatório, "apesar de as chegadas de migrantes e de requerentes de asilo terem diminuído para níveis anteriores a 2015", verificou-se na União Europeia uma "abordagem austera e frequentemente oportunista anti-imigração vinda de alguns governos [...], incluindo os de Itália, Hungria e Áustria".

A HRW acrescenta que, também neste ano, "líderes populistas de Estados-membros da UE usaram a questão da migração para criar medo e aumentar o apoio nas urnas", o que influenciou também a "posição europeia" sobre estes assuntos.

Assim, "com as divergências [entre os Estados-membros] a bloquearem" o acolhimento em países europeus de migrantes e requerentes de asilo, o foco foi "mantê-los longe" da União, observa a HRW, falando em "medidas polémicas" como a cooperação com outros países com menores recursos fora da UE para prestar esse apoio.

Em 2018, "os partidos e ideias extremistas populistas voltaram a exercer uma enorme influência sobre a política europeia", refere o relatório, recordando os resultados eleitorais na Hungria, Itália, Áustria e também na Suécia, Eslovénia e Alemanha (eleições regionais).

Assistiu-se ainda a "casos de racismo ou de incitação ao ódio em muitos países da UE", como na Bulgária, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Itália, Eslováquia, Espanha e Reino Unido, conclui a HRW.

Dados desta ONG, incluídos no relatório, demonstram que, até meados de Novembro do ano passado (os números mais recentes), registaram-se 107.900 chegadas de migrantes aos países da UE por mar (a grande maioria) ou por terra.

Este número compara com um total de 172.300 chegadas no período homólogo de 2017.

Abusos cometidos pela polícia no Brasil contribuem para altos índices de violência

"Abusos cometidos pela polícia, incluindo execuções extrajudiciais, contribuem para um ciclo de violência que prejudica a segurança pública e põe em perigo a vida de polícias e civis. (...) Agentes da polícia, incluindo oficiais de folga, mataram 5.144 pessoas em 2017, 20% a mais do que em 2016", declarou a HRW,admitindo que alguns assassínios tenham sido em legítima defesa.

No outro verso da moeda, e segundo dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública referentes a 2017, 367 agentes da polícia, em serviço e de folga, foram mortos em 2017.

No seu relatório anual, a organização frisou que não conseguiu obter acesso a dados mais recentes, relativos a 2018.

Ainda sobre a violência policial no Brasil, a HRW afirmou que o provedor de justiça da polícia de São Paulo analisou centenas de assassínios cometidos pelas forças policias em 2017, concluindo que a "polícia usou força excessiva em três quartos" dessas execuções, "por vezes contra pessoas desarmadas".

As condições precárias das cadeias brasileiras também estiveram em foco no relatório da organização de defesa dos Direitos Humanos, onde a sobrelotação e a falta de funcionários são os problemas que mais impedem as autoridades prisionais de manter a ordem dentro de determinados estabelecimentos prisionais.

O ano passado foi marcado pela entrada de milhares de venezuelanos no Brasil, na procura por melhores condições de vida. Apesar de o país ter mantido as suas fronteiras abertas, a HRW afirma que há registos de vários ataques xenófobos contra venezuelanos, como a sua expulsão de abrigos provisórios e a destruição dos seus bens pessoais.

Dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para o Refugiados (ACNUR) mostram que de Janeiro de 2014 a Abril de 2018, 25.311 venezuelanos solicitaram uma autorização de residência no Brasil e 57,575 pediram asilo. No entanto, e segundo a HWR, em 2016 o país sul-americano apenas concedeu asilo a 14 venezuelanos.

Angola regista "progressos significativos"

A HRW considerou que Angola está a registar "progressos significativos" em várias frentes dos Direitos Humanos, embora ainda se registem episódios de violação.

Como factores negativos, destaca a manutenção das práticas de detenção arbitrárias, as execuções extrajudiciais, a falta do direito a uma habitação condigna, as limitações à liberdade de expressão e de imprensa, as violações à orientação sexual, corrupção e tratamento de imigrantes.

Por outro lado, a HRW destaca os progressos no combate à corrupção, iniciativa do Presidente angolano, João Lourenço, empossado em Setembro de 2017, que tem efectuado numerosas investigações e que já levou à detenção de vários ex-governantes e dirigentes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder desde 1975), incluindo familiares do antigo chefe de Estado José Eduardo dos Santos.

Como negativo, o relatório da HRW aponta a continuação das execuções extrajudiciais por parte da polícia de Angola, apoiando-se numa notícia publicada em Fevereiro de 2018, da autoria do jornalista de investigação Rafael Marques, em que dá conta da morte de pelo menos 50 angolanos.

Por outro lado, o documento chama a atenção também as numerosas detenções arbitrárias em Angola, com a polícia a ser responsabilizada pela prisão desnecessária de activistas e de manifestante.

Segundo a organização não-governamental, as liberdades de imprensa e de expressão também registaram algumas violações, citando os casos de Rafael Marques, e do editor do semanário O Crime, Mariano Brás, que chegaram a ser ouvidos em tribunal, e posteriormente absolvidos, pelas acusações de insulto ao Estado.

A organização dá ainda conta de violações aos direitos da comunidade LGBT, embora saliente a importante vitória alcançada em Junho de 2018, quando o Governo angolano concedeu o estatuto legal à instituição Íris Angola, que se queixa da frequência de actos de discriminação dos seus membros no acesso à educação e aos serviços de saúde, entre outras.

Impunidade e detenções arbitrárias em Moçambique

Apesar de o Governo moçambicano ter assumido o compromisso de lutar contra a violação dos direitos humanos, os autores destes crimes não têm sido responsabilizados, principalmente em zonas de conflitos, conclui a HRW.

De acordo com a HRW, na província de Cabo Delgado, onde grupos armados desconhecidos têm estado desde Outubro de 2017 a protagonizar ataques armados a aldeias recônditas da província, as Forças de Defesa e Segurança são implicadas em vários casos de violação de direitos humanos, no âmbito das suas acções para combater estes grupos.

Além da violação de Direitos Humanos em Cabo Delgado, a HRW destaca perseguições e sequestros em que os autores não são responsabilizados.

A organização destaca ainda tentativas de limitação da liberdade de expressão, com a definição novas taxas para a comunicação social.

A HRW alerta ainda para os casos de violência contra pessoas portadoras de albinismo, que já causou um número indeterminado de mortos em províncias de norte e centro do país.

Repressão política e violações persistem na Guiné Equatorial

A repressão política e violação de Direitos Humanos mantiveram-se na Guiné Equatorial, em 2018, com as receitas do petróleo a financiarem os gastos da elite política e sem sinais de melhorias de vida das populações, denuncia o relatório da HRW.

"Corrupção, pobreza e repressão de direitos civis e políticos continuaram a minar os Direitos Humanos na Guiné Equatorial. Vastas receitas do petróleo serviram para financiar o exuberante estilo de vida da elite política, tendo sido feitos poucos progressos na melhoria do acesso da população a cuidados de saúde primários e educação", conclui o relatório.

Segundo a HRW, há "alegações credíveis" de que persistem a má gestão de fundos públicos, a corrupção ao mais alto nível e as violações de direitos humanos, incluindo a repressão das actividades de grupos da sociedade civil e de opositores políticos, tortura e julgamentos sumários.

A HRW assinala ainda que os poucos meios de comunicação social privados são controlados por pessoas próximas do Presidente Teodoro Obiang e que a liberdade de expressão, manifestação e reunião se mantêm limitadas.

O relatório indica como ponto positivo a ratificação pela Guiné Equatorial da convenção das Nações Unidas contra a corrupção, uma exigência do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a aprovação de um empréstimo.

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