Ao pôr "a fasquia tão alta", João Lourenço tem margem para recuo?

Com o afastamento do que restava da família de José Eduardo dos Santos dos centros de poder, a promessa de cerco à corrupção e de recuperação do dinheiro retirado ilicitamente de Angola, a mensagem do Presidente angolano foi lançada. Agora, os angolanos "querem resultados concretos".

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Hannibal Hanschke/Reuters

João Lourenço chega a Portugal tendo cumprido mais de um ano na presidência de Angola. Este período foi marcado pelo discurso duro contra a corrupção e por um claro afastamento de toda a família do seu antecessor, José Eduardo dos Santos. Uns vêem nisto um novo paradigma na política angolana desde a independência, em 1975. Outros temem que se esteja a avançar para uma simples mudança de nomes, não se vislumbrando uma alteração estrutural no regime que governou o país durante décadas. Mas há quem queira esperar para ver o que produzem os sinais dados até agora.

“Temos de esperar para ver até onde o Presidente conseguirá levar o efeito destas mudanças”, diz ao PÚBLICO Eugénio Costa Almeida, investigador angolano do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. “Também têm existido algumas mudanças estruturais. De qualquer das formas, penso que ainda é um pouco cedo para termos a certeza do alcance”.

Com as promessas de cerco à corrupção, de recuperação do dinheiro expatriado ilicitamente para o estrangeiro, e de viragem política, João Lourenço “pôs a fasquia tão alta” que um possível recuo do Presidente pode ter consequências muito negativas para si e para o país, defende Carlos Rosado de Carvalho, director do jornal angolano Expansão e professor na Universidade Católica de Luanda. “O Presidente pôs a fasquia tão alta, e cada vez que fala ainda eleva mais essa fasquia, que eu recuso-me a acreditar que ele vá depois recuar”.

“Se o Presidente não fizer o que diz, ou até apenas dois terços daquilo que diz que vai fazer, a situação de Angola vai complicar-se muito. A situação angolana exige medidas muito próximas daquelas que ele está a propor”, acrescenta Carlos Rosado de Carvalho.

“Um sem fim de problemas”

Quando Lourenço foi eleito, em Agosto de 2017, vencendo as eleições com 61% dos votos, ficaram dois pólos de poder em Angola. O antigo ministro da Defesa subiu à Presidência e José Eduardo dos Santos continuou a liderar o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido que governa o país desde a independência. A fronteira entre o poder do Estado e do MPLA foi sempre ténue, principalmente durante os 38 anos de governação de Eduardo dos Santos.

Porém, no início de Setembro, no congresso extraordinário do MPLA, Lourenço foi eleito por 98% líder do partido, ficando com o poder executivo, das Forças Armadas, dos serviços de informação, de nomeação de altos cargos na Justiça e com o controlo partidário.

O Bureau Político do MPLA foi imediatamente reformulado e as exonerações seguiram o caminho que já estava a ser percorrido.

As saídas mais mediáticas foram, naturalmente, a dos filhos do ex-Presidente. Isabel dos Santos foi retirada da presidência da Sonangol (em Novembro de 2017) e, depois, José Filomeno, “Zenú”, da liderança do Fundo Soberano Angola. Pelo meio, também Welwitschea “Tchizé” dos Santos e José Paulino foram exonerados da televisão pública angolana.

Algumas destas exonerações foram acompanhadas por processos judiciais. “Zenú”, por exemplo, foi formalmente acusado por suspeita de transferência irregular de 500 milhões de dólares (406 milhões de euros) para o Reino Unido.

As exonerações de Lourenço atingiram também as Forças Armadas, a Polícia Nacional e outros aliados próximos de Eduardo dos Santos.

João Lourenço deu sinais de querer avançar com o que parte da sociedade angolana espera: responsabilizar os corruptos.

“Responsabilizar criminalmente os que prevaricaram - se queremos aprofundar a noção de um Estado de Direito, se queremos continuar a trabalhar para a democratização da sociedade - vai depender do papel da Justiça”, avisa, em respostas enviadas ao PÚBLICO, Carlos Sérgio Monteiro Ferreira, director do Novo Jornal de Angola. “Podemos querer ver uma dúzia, duas dúzias de pessoas a serem levadas a tribunal, mas isso é naturalmente subjectivo. Não podemos defender a independência judicial e depois querer fazer justiça pelas próprias mãos”.

“Relativamente a quem se provar que na realidade foi particularmente activo neste ‘assalto’ que foi feito ao país, ninguém tem dúvidas de que os angolanos os querem ver, no mínimo, a devolver o património que nos foi tirado”, diz ainda Monteiro Ferreira.

Neste aspecto, João Lourenço tem prometido uma guerra sem quartel para recuperar o dinheiro que foi retirado ilicitamente de Angola.

“A (medida) que poderá ter mais impacto até ao final do ano poderá ser a questão do repatriamento de capitais saídos ilicitamente do país e a forma como ela se está a processar”, destaca Costa Almeida, realçando que não há nenhuma medida de Lourenço que “se possa sobrepor a todas as outras”, mas há “um conjunto de medidas que, interligadas, poderá ter o impacto que se deseja”.

Carlos Rosado de Carvalho divide as decisões tomadas pelo Presidente angolano. As mais mediáticas foram, “sem dúvida, as que tiveram a ver com os filhos do ex-Presidente”. “Interpreto isso como um sinal: se eu me estou a meter com os filhos do antigo Presidente isto quer dizer que não tenho medo de ninguém”, diz o jornalista. “Mas o Presidente precisa de ir mais longe. Tocar noutras pessoas. Tenho esperança de que as outras coisas sejam os tribunais a fazê-lo e não o Presidente”.

A que considera ser a mais estrutural, e “a mais emblemática”, até ao momento foram as alterações relativas ao investimento privado estrangeiro, do qual “está dependente o futuro de Angola e de João Lourenço”. Em concreto, Lourenço terminou com o mínimo de um milhão de dólares de investimento a privados estrangeiros e com a obrigatoriedade de um investidor ter um sócio angolano. “O Presidente não só mudou a lei como fez uma série de viagens onde o discurso foi o da abertura da economia”, acrescenta. “Para aquilo que Angola precisa, penso que é a mais emblemática”.

Apesar dos sinais positivos, Rosado de Carvalho avisa que o “povo tem memória curta” e que, a partir daqui, “as pessoas vão querer resultados concretos”.

Mas poderá demorar até que a população comece a sentir essas melhorias na sua vida. O director do semanário Expansão admite mesmo que “do ponto de vista económico, as coisas ainda possam piorar um bocado antes de melhorar”, prevendo assim “um enorme desafio para o Presidente”.

Monteiro Ferreira aponta alguns temas que devem merecer especial atenção: “O aumento da produção nacional, agricultura, pescas, agro-indústria. A cultura. A educação cívica. A recuperação de valores civilizacionais básicos, destruídos pela sofreguidão dessa elite, felizmente em decadência, mas ainda com capacidade de resistência e de tentar dificultar este trabalho gigantesco."

O director do Novo Jornal defende ainda a alteração do “papel de quem pertence à super-estrutura, obrigando-os a estar mais próximos da população, desconcentrando os poderes de Luanda”, e recorrer “a uma cooperação séria, nos domínios que mais precisamos : ensino, saúde, formação de quadros, recuperação das escolas técnico-profissionais, apoio às pequenas e médias empresas, a agricultura familiar”.

Monteiro Ferreira realça no entanto que “há problemas muito graves por resolver”. “Os últimos cinco anos de governo foram criminosamente desastrosos. O país atingiu a bancarrota. E há um sem fim de problemas por resolver. De todo o tipo”.

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