O rock pode esperar. O Primavera começa com Miguel e Run The Jewels

No festival Nos Primavera Sound, conotado com as linguagens mais alternativas do rock, a música negra urbana personificada por Miguel, Run The Jewels, Flying Lotus, Skepta ou Sampha vai ter uma presença muito significativa. A começar logo pela noite de quinta-feira.

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A montagem do palco no Parque da Cidade. Paulo Pimenta
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Miguel, talvez o único possível sucessor de Prince, que fará a sua estreia em Portugal já esta noite dr
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Flying Lotus dr
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Angel Olsen dr
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Michael Gira dr
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Skepta dr
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Run The Jewels dr

O recinto está pronto. A concepção do espaço do festival Nos Primavera Sound, a cargo do artista e músico João Paulo Feliciano, guardará algumas surpresas como costuma acontecer. E o resto será com a música. E aí, à primeira vista, olhando para o cartaz, vislumbram-se algumas mudanças, com a presença mais significativa de sempre de sonoridades urbanas como o hip-hop, R&B ou grime. É verdade que já tinha havido espaço em edições anteriores para Kendrick Lamar, FKA Twigs ou Run The Jewels, para darmos três exemplos significativos, mas este ano essa presença é mais marcante. Há muita gente que irá ao festival este ano atrás de alguns dos nomes mais sonantes da mais recente música urbana britânica (Skepta, Sampha, Sleaford Mods) ou das visões mais alternativas do hip-hop americano, personificado por Flying Lotus, Death Grips ou Run The Jewels, que são repetentes.

A lotação já esgotou para sexta-feira. Sábado está quase. E para esta quinta-feira ainda existem bilhetes. É este o ponto da situação a algumas horas de começar o festival cuja sexta edição se realiza no Parque da Cidade do Porto a partir desta quinta-feira. “Estabelecemos como limite de lotação 30 mil pessoas por dia”, diz-nos José Barreiros, da organização, salientando que existiu reforço nas zonas de casa de banho e alimentação. “O festival tem crescido de ano para ano no número de espectadores, mas o recinto tem-se portado bem e nesse sentido não nos interessa ultrapassar certos limites. Não queremos proporcionar a ninguém uma má experiência.”

Na noite desta quinta-feira o rock estará ausente. O destaque vai para a electrónica dançante e contundente dos franceses Justice, para a estreia em Portugal de Miguel e Flying Lotus e para o retorno dos Run The Jewels. Para muito boa gente, depois da morte de Prince, não se vislumbra ninguém com potencial semelhante a não ser Miguel. É uma comparação pesada, mas quem já o viu ao vivo, ou ouviu o seu último e terceiro álbum álbum, Wildheart (2015), sabe que não é descabida. É um disco em que a guitarra tem uma presença central e isso sente-se ainda mais ao vivo, seja quando se apresenta com a sua banda em canções lentas ou em números mais electrizantes, numa mescla de soul, R&B, rock ou funk libidinoso.

Há dois anos os Run The Jewels (EL-P e Killer Mike) deram um excelente espectáculo e tudo indica que o repetirão desta feita, ou não estivessem ainda mais politizados, sendo mentores de um hip-hop denso, com batidas directas e veementes, como se constata ouvindo o seu último e terceiro álbum, lançado em Dezembro. Para uma outra panorâmica sobre o momento actual do hip-hop haverá que ver e ouvir Flying Lotus, numa linha mais abstracta, textural e climática, com as imagens a terem um papel também relevante, ou não estivéssemos a falar de Steve Ellison, que se prepara para estrear em Julho a sua primeira longa-metragem, Kuso.

Os dois palcos do primeiro dia – sexta e sábado serão quatro – começarão a funcionar pelas 17h, quando o português Samuel Úria e depois os americanos Cigarettes After Sex, algures entre a melancolia dos Mazzy Star e a dolência dos Beach House, entrarem em acção. As canções pop orquestrais de Rodrigo Leão com a voz de Scott Mathews, ou a pop de guitarras dos escoceses Arab Strap completam o cartaz de um primeiro dia em que a música negra predomina. “O festival pretende mostrar o que de mais inovador e refrescante existe na música actual e neste momento o R&B e o hip-hop vivem um momento criativo, daí essa aposta”, justifica José Barreiros, dizendo que se trata de “um risco calculado”, até porque a reacção ao nível da venda de bilhetes foi a melhor de sempre. Claro que isso não significa que a matriz rock se tenha perdido. Está é mais diluída.  

E, ao segundo dia o rock, em todas as suas colorações, far-se-á ouvir. Grandioso e catártico com os americanos Swans de Michael Gira, ou primitivo, em estado bruto, com os também veteranos e americanos Royal Trux. Com delirantes alusões psicadélicas como acontece com os australianos King Gizzard & The Lizard Wizard ou resgatando os valores do rock indie dos anos 1990 pelos nova-iorquinos Cymbals Eat Guitars.

No entanto, poderão vir das margens urbanas outras das duas actuações mais explosivas do festival. Falamos do britânico Skepta, figura central do ressurgimento do grime, a sonoridade de rua londrina que deu que falar há alguns anos e que agora reaparece com enorme vitalidade no centro do mercado. Os também britânicos Sleaford Mods já não são novidade em Portugal, mas ver a dupla ao vivo é sempre garantia de urgência, libertação e um composto sonoro repetitivo (do pós-punk ao grime), moldado por letras que reflectem o capitalismo tardio desumanizado.

Tudo isto acontecerá num dia em que muitos se concentrarão no americano Bon Iver, que virá apresentar o álbum 22 A Million (2016), navegando entre a nostalgia folk e inovadoras técnicas de produção, ou na compatriota Angel Olsen, ou não fosse a cantora-compositora uma das grandes vozes do folk-rock contemporâneo, ou ainda em Nicolas Jaar, artífice de uma emocionante sonoridade electroacústica que voltou a estar em grande o ano passado no álbum Sirens. Mas da folk de Julien Baker ao tecno minimalista de Richie Hawtin, do rigor clássico de Hamilton Leithauser à country de Nikki Lane, da pop exemplar dos novatos Whitney ou dos veteranos Teenage Fanclub, existe muito por onde escolher.

Ao terceiro dia, a electrónica distorcida e desordenada poderá ficar na memória de muitos. É que em palco estarão o inglês Aphex Twin, que promete um espectáculo audiovisual estimulante, e também os americanos Death Grips, que partem do hip-hop mas saem dos seus limites para uma linguagem de confronto feita de ruído, corrosão, electrónicas e palavras gritadas com raiva. Para ambientes mais tranquilos haverá de contar com a electro-soul do inglês Sampha, uma das grandes estreias do ano com o álbum Process, com a folk de retoques psicadélicos da americana Weyes Blood ou com a pop electrónica dos Metronomy.

O rock será nervoso com os habituais Shellac, de contornos psicadélicos com os americanos The Black Angels, de ritmos frenéticos com os canadianos Japandroids e certamente incendiário no regresso dos excelentes Make-Ups, combinação americana de garage, rock & roll e soul.  Mas até pode ser a mais veterana em cena – a brasileira Elza Soares, de 79 anos – a dar o concerto de que muitos se irão recordar. Uma coisa é certa: num festival em que cada um pode construir o seu próprio itinerário, na edição deste ano existe mais música urbana negra do que nunca.

“O rock está menos representado este ano, ao nível dos nomes mais sonantes, mas isso não é conclusivo, porque o que nos interessa é apresentar o que de mais estimulante acontece no momento”, garante José Barreiros. “Nick Cave terá sempre lugar aqui. Agora fico satisfeito por ter o Miguel pela primeira vez, em vez dos Mogwai que já cá tocaram.” É isso. Está tudo a postos. É este o momento. O festival vai começar.

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