Elza Soares: Choque de vida

Elza Soares é a mulher que a tudo sobreviveu. Elza Soares é um monumento brasileiro. Assina em A Mulher do Fim do Mundo um álbum de luta e de vida, o primeiro de originais aos 78 anos. A mulher vinda do planeta fome diz ao Ípsilon que quer "dar voz a toda a gente que está sofrendo"

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foto: STEPHANE MUNNIER

No início dos anos 1980, uma velha amiga bateu à porta de Caetano Veloso. Disse-lhe que ia deixar de cantar. Tinha um filho doente em casa e ia trocar os concertos, cada vez mais escassos e mal pagos, por um trabalho que lhe desse alguma estabilidade. Na verdade, fora ao encontro do velho amigo para que ele lhe dissesse que não podia ser. E Caetano disse. “Era como se o lugar dela estivesse desaparecendo do cenário brasileiro. Mas o Brasil não podia fazer isso com ela. O Brasil não podia fazer isso consigo mesmo”. Não podia. E não fez.

Pouco depois, em 1984, Caetano convida-a para fazer dueto em Língua, canção incluída no álbum Velô. Canção de amor à língua, canção a perspectivar-lhe um futuro na música brasileira (“samba-rap”, ouvimos por ali), música em que se diz: “nós canto-falamos como quem inveja negros / que sofrem horrores no gueto do Harlem / livros, discos, vídeos à mancheia / e deixem que digam, que pensem, que falem”. A canção não podia ser mais apropriada para Elza Soares, rainha sambista que sempre procurou mais longe, filha da favela autodefinida como “mulher forte e feminista” – “é a única forma de sair disso”, como diz em entrevista por telefone ao Ípsilon.

Elza Soares renasceu nos 1980 pela mão de Caetano Veloso. Renasceria novamente uma década depois, olhando em frente, buscando novos sons, novos cruzamentos, num álbum admirável, Do Cóccix até ao Pescoço (2002), que era funk e hip hop e cobertura electrónica com o coração no samba e um pé no jazz. Mulher irrequieta, tão desejosa de vida como maltratada por ela, mulher exemplo e cantora excepcional, tudo superou. Entrou no século XXI decidida a abraçá-lo como se estivesse a começar naquele preciso momento, decidida a mudar, como sempre, sendo nada mais que ela mesma.

 

Ainda assim, não estávamos preparados para isto que é A Mulher do Fim do Mundo. Editado o ano passado no Brasil, coberto de prémios e elogios da crítica e abraçado pelo público, tem agora lançamento mundial. É, literalmente, o álbum de uma vida. Marca o encontro entre uma veterana então com 78 anos e um grupo de músicos, quatro décadas mais novos, que, tal como ela, gostam de experimentar novas soluções – chamam “samba sujo” ao que faz esse núcleo de paulistas que vêm trabalhando e transformando a canção brasileira.

Quando Guilherme Kastrup, produtor do álbum e uma das figuras destacadas desse movimento, discutia com Elza o álbum em gestação, ela foi peremptória. Queria um álbum sobre “sexo e negritude”, conta Guilherme ao Ípsilon. Álbum terminado, Elza Soares considerou-o o melhor que alguma vez gravara. Porquê?, perguntamos desde Lisboa. Do seu apartamento no Rio de Janeiro, Elza respondeu. “Porque nesse disco eu falo tudo o que quero, falo tudo o que sinto. Do Cóccix até o Pescoço é um disco histórico que deu uma volta na minha carreira, mas neste aqui me deram liberdade para falar tudo. Tinha muita coisa cá dentro que queria colocar fora. A mulher que apanha do marido e que tem que denunciar, a vida difícil do negro com esse racismo hipócrita, o homossexual que sofre demais. Nesse disco tem tudo isso”. E tem mais, tem samba feito distorção eléctrica, tem gravilha sonora envolvendo baixos electrónicos, tem inquietação moderna agitando formas perenes, tem a voz de Elza, maturada pelo tempo, a atravessar com gosto e convicção esse novo mundo sónico [ver crítica]. A voz, precisamente: “A Mulher do Fim do Mundo dá voz. Quer passar para todo o mundo a voz de quem está sofrendo, de quem está desesperado”.

A Mulher do Fim do Mundo tem a Maria da Vila Matilde que ameaça o marido abusivo: “cê vai se arrepender de levantar sua mão para mim”. Tem Benedita, travesti tentando sobreviver nas ruas, ferida de morte pelo crack, pelo ódio que lhe dirigem, pela violência das milícias. Tem dor e tem êxtase, suores frios e suor quente: “Unhas cravadas / em transe latejo / roupas jogadas no chão / pernas abertas / te prendo num beijo / sufoco a sofreguidão” (em Pra fuder). Começa com Coração do mar, poema do modernista Oswald de Andrade – “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / É o navio humano, quente, guerreiro do mangue”. Termina, tal como começara, com nada mais que a voz rouca, cheia e quente de Elza Soares, arrancada à terra e arrancada do fundo da alma. Ouvimo-la quando Comigo, assinalada como a última canção do álbum, já se despediu há um minuto. De repente, quase sumida na mistura, uma voz lá longe: “Daria minha vida / a quem me desse o tempo / Mas se eu me levantar / Ninguém irá saber / E o que me fez morrer / Vai-me fazer voltar”. A Mulher do Fim do Mundo volta sempre. Não por acaso, “luta” é a palavra que mais repetirá ao longo da conversa com o Ípsilon.

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Elza Soares não se incomoda com a categorização, muito pelo contrário. "Amo quando me chamam diva da bossa negra. Diz tudo, não é?" DR

Ela veio do planeta fome

Elza Soares nasceu em 1937 no Rio de Janeiro, na favela de Moça Bonita, filha de mãe lavadeira e de pai operário e músico amador. A família mudou-se para outro bairro, Água Santa, era Elza ainda muito jovem. Aos 12 anos, o pai obrigou-a a casar com um homem dez anos mais velho. Teve cinco filhos dele, o primeiro aos 13 anos. Dos cinco, um morreu de subnutrição, outro foi entregue para adopção. Mas Elza não se conformava à condição de mãe adolescente submissa ao marido. Tornou-se operária, empregada numa fábrica de sabão. Entretanto, o lado musical da família (o pai e um dos irmãos tocavam o violão, o avô a harmónica), a par do gosto por nomes da canção brasileira como Ângela Maria, Orlando Silva e Dalva de Oliveira, mostraram-lhe um outro caminho.

Tinha 16 anos quando desceu do morro para se inscrever no programa “Calouros em Desfile”, emitido pela Rádio Tupi e apresentado pelo lendário Ary Barroso, autor de Aquarela do Brasil. Era à época, estamos em 1953, um dos mais famosos programas da rádio brasileira. Naquele domingo, Elza cumpriu o melhor possível a indicação dada pelo homem que, dias antes, recolhera a sua inscrição: “Se ponham todos bonitos”. Pegou num vestido da mãe, vários números acima do seu, utilizando molas de roupa para o ajustar aos seus famélicos 45 quilos e, quando ouviu o seu nome, subiu pela primeira vez a um palco. O público, cruel, reagiu à sua aparição com risos. Ary Barroso cavalgou a onda. “De que planeta você está vindo?”. Elza reagiu rapidamente: “Do mesmo planeta que o senhor”. Ary ripostou: “E posso saber que planeta é esse?”. A resposta, um murro no estômago, silenciou o burburinho do público e apagou o sorriso do rosto de Ary Barroso. “Do planeta fome”, exclamou Elza Soares – “aí acabei com ele”, recorda hoje, 63 anos depois.

Cantou depois Lama, de Aylce Chaves e Paulo Marques. Ouviram-se aqueles versos iniciais (“Se eu quiser fumar, eu fumo / Se eu quiser beber, eu bebo / Não me interessa mais ninguém / Se o meu passado foi lama / Hoje quem me difama / Viveu na lama também”), e viu-se a forma como Elza Soares trazia scat jazz ao samba que balançava na sua voz. No fim, Ary Barroso sentenciaria: “Senhoras e senhores, nesse momento nasce uma estrela”.

Elza começou a trabalhar com orquestras e, através delas e dos seus músicos, a conhecer verdadeiramente o jazz que já estava contido na sua voz. Louis Armstrong, Billie Holiday ou Ella Fitzgerald continuam a ser seus heróis – “e Chet Baker, com aquela voz maravilhosa”, acrescenta ao Ípsilon. A fluência do seu scat e a forma como dobrava sem mácula sopros e metais dão-lhe protagonismo entre músicos e público atento. Entretanto, o Brasil congeminava uma das suas invenções mais admiráveis. A bossa nova anunciava-se e o produtor, cantor e compositor Aloysio de Oliveira, um dos instigadores do movimento, logo reparou em Elza. Assinou-a para a editora Odeon e colou-lhe um rótulo, “Bossa Negra”. Elza Soares não se incomoda com a categorização, muito pelo contrário. "Amo quando me chamam diva da bossa negra. Diz tudo, não é?", declarava não há muito tempo à imprensa brasileira.

 

Em 1959, com a edição do primeiro disco, uma versão de Se acaso vocês chegasse, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, plena de força e vitalidade (e o scat à Louis Armstrong que se tornaria imagem de marca), a intuição de Ary Barroso tornava-se verdade indesmentível. Nascera uma estrela. Três anos depois, no Verão de 1962, estava em Santiago do Chile. Decorria ali o Campeonato do Mundo de Futebol e Elza Soares era a madrinha da selecção que revalidaria o título de campeã conquistado pela primeira vez em 1958. A grande estrela da selecção era Pelé, avançado do Santos, logo seguido de Mané Garrincha, símbolo do Botafogo, o anjos das pernas tortas que competia em popularidade com o número 10 brasileiro. No Chile, Elza conheceu e cantou com o seu ídolo, Louis Armstrong. Não foi o mais importante que lhe aconteceu nesse Mundial de Futebol. Ali conheceu Garrincha, com quem viveria uma relação de mais de uma década, apaixonada e conturbada, minada pelo alcoolismo dele e por episódios de violência quando a dependência se tornou incontrolável. Foi uma paixão que mobilizou todo o país.

“Eu acho que só quem nasceu pobre como eu e conserva o espírito rico é capaz de fazer isto”. As palavras são de Elza Soares e foram registadas nas páginas do jornal português A Capital em Julho de 1971. A entrevista aconteceu durante uma passagem da cantora por Portugal, onde gravou uma aparição televisiva para a RTP. A diva da bossa deixara o Brasil há um ano. Explicava que se mudara para Itália para que o marido pudesse prosseguir carreira – esperava-o o poderoso AC Milan, dizia-se, mas o corpo inchado pelo alcoolismo abortou o negócio e Garrincha acabou por jogar em equipas amadoras. Adiantava que também partira dela o desejo de mudança, de recomeçar enquanto cantora noutras terras. Sentia-se como uma missionária: “É o tempo da música brasileira na Europa”, dizia. “Os Beatles retiraram-se, convém atacar”, rematava com humor. As declarações escondiam uma outra realidade. Venceria na Europa, com uma carreira solidificada nas salas italianas, com uma mudança para Paris onde se produziria um musical dedicado à sua história de vida, mas a saída do Brasil fora tudo menos pacífica.

O romance com Garrincha foi polémico desde o início. Mané era casado e pai de nove filhos. Elza, numa sociedade católica, misógina e dominada por uma violenta e conservadora ditadura militar, tornou-se rapidamente alvo de todos os ataques – o amor era mútuo, a traição era dele, “mas já viu que só a mulher era acusada?”, lança ao Ípsilon. Adeptos do Botafogo bombardeavam-lhe a casa diariamente com ovos e tomates. As rádios faziam campanha contra a “destruidora de lares”. Certo dia, um carro pára frente à residência que habitava com Garrincha. Do interior, uma saraivada de tiros é despejada contra a fachada. Não era certo que tivesse sido um sinal dado pelos generais no poder, mas a pressão tornou-se demasiada. Pouco depois de os amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil terem sido oficialmente expulsos pela ditadura, Elza seguia-os no exílio.

Teria tido mais aceitação do público se não fosse o relacionamento com Garrincha?, perguntou-lhe a Rolling Stone Brasil em Dezembro de 2014. "Sim. E se eu tivesse sido como queriam que eu fosse, uma donzelinha frágil com vestido até à canela e gola no pescoço. Meu vestido só não sobe mais por causa das calcinhas. Era uma época em que se tinha uma ideia da mulher submissa, que muitas vezes era depósito para lixo de alguns homens. Nunca quis isso e sofri também. Ser livre, naquela época, foi difícil".

Elza Soares, mulher inconformada que não calava as suas opiniões, mulher que assumia com naturalidade as suas paixões e sexualidade numa sociedade que exigia conformismo e recato, destacava-se. Numa entrevista conjunta ao O Globo, após a edição de A Mulher do Fim do Mundo no Brasil, Caetano Veloso contou como, ainda muito jovem, entre Santo Amaro e Salvador da Bahia, percebeu imediatamente que Elza era especial. Não só pela voz e pela forma de cantar. “Me identifico com a vocação para a lucidez. Elza tem uma clareza mental. É muito inteligente, sempre foi. A gente percebia nas entrevistas que saíam, nas escolhas, nas atitudes, tudo”.

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Editado o ano passado no Brasil, coberto de prémios e elogios da crítica e abraçado pelo público, o álbum de originais tem agora lançamento mundial foto: STEPHANE MUNNIER

Nasce A Mulher do Fim do Mundo

2013. Cacá Machado, músico e historiador integrante da nova vanguarda paulista dedicada a renovar o samba e a MPB, edita Eslavosamba. No disco, reuniu-se grande parte a trupe de renovadores: os membros do grupo Metá Metá e nomes como Romulo Fróes, Rodrigo Campos ou o supracitado Guilherme Kastrup. A primeira canção, Sim, teve convidada de peso, Elza Soares. Ali começou a nascer A Mulher do Fim do Mundo.

“Esse disco é o encontro da Elza com um grupo de músicos que vem trabalhando contemporaneamente num momento muito forte de produção, com uma estética muito forte e muito intensa”, contextualiza desde São Paulo Guilherme Kastrup. Musicalmente, o arrojo deles fez eco no prazer dela pela descoberta. “Quando ouviu o arranjo [de Sim] que fizemos, disse logo que adorava o barulho, o ruído das guitarras”. Sucederam-se os concertos de apresentação do álbum e solidificou-se a relação entre os músicos e a cantora. O projecto inicial seria fazer uma releitura moderna de sambas cantados por ela. Tal, porém, começou rapidamente a parecer pouco ambicioso. A Mulher do Fim do Mundo transformou-se no primeiro álbum de originais de Elza Soares. Guilherme falou com vários compositores, como Celso Slim e Rómulo Fróes (também directores artísticos do disco). Pediu-lhes canções que reflectissem a vida, a personalidade e os temas que a voz que as cantaria queria ver abordados. No final, tinha 50 música em mãos. Sobreviveram à garimpagem os 11 de A Mulher do Fim do Mundo. E nasceu esta magnífica música híbrida que agora nos chega - é possível que venha a apresentá-la ao vivo em Portugal no decorrer da sua digressão europeia de Novembro.

“Nós temos uma ligação muito forte ao samba e às raízes da música brasileira, mas também uma estética quase punk-rock que bebe de várias fontes. Com a Elza, fazer essa ligação é muito natural”, acentua Guilherme Kastrup. “O estigma de sambista pode ser castrador, porque ela é uma grande sambista, mas não fica presa a isso. Extrapola qualquer questão de género musical. A ideia partiu de um disco de samba e a gente tinha no samba o miolo central, mas sem ficar preso a ele. Isso faz parte da nossa cultura. Não precisa respeitar certos padrões estéticos, certos condicionamentos. Cada vez que ela canta é como se estivesse cantando pela primeira e pela última vez. A Elza é o samba, mas o disco tem uma abertura que representa melhor o que ela é”.

 

E o que é então, Elza Soares? “É para todos nós, brasileiros, uma figura muito emblemática, e não só musicalmente. É uma das maiores representantes do povo brasileiro. Nasceu na favela, super desfavorecida, passou uma vida muito dramática, e chegou onde chegou. É uma voz muito importante. Tem um lugar um pouco aquém do que merece, talvez até por conta das lutas em que se embrenhou, por ter sido uma mulher pobre e negra que venceu. Mas acho que a história se vai encarregar de corrigir esse defeito. Elza é uma rainha neste sentido: é uma vitoriosa do nosso povo”.

Elza Soares foi uma das cantoras convidadas para actuar na cerimónia de abertura dos recentes Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A emoção foi tão grande, recorda, que nem se lembra do que sentiu. “A gente fica tão envolvida que não dá nem tempo para pensar, só dá para pensar no que está a fazer naquele momento. Depois é que passa pela cabeça que foi muito bonito”. Pouco tempo depois, destacou-se nos elogios à judoca Rafaela Silva, vencedora de uma medalha de ouro e alguém cujo percurso de vida tem paralelo com o seu. “Foi muito importante porque ela é uma mulher negra que sofreu muito para chegar onde chegou. Merece todo o meu carinho, todo o meu apoio, todo o meu respeito. Tem nela muita luta, luta real, luta verdadeira”.  

No seu discurso calmo e ponderado, naquela voz grave que se impõe naturalmente, descreve-nos essa “mulher do fim do mundo” que aqui canta. “A mulher do fim do mundo é essa mulher com poder para denunciar, a mulher que não fica calada com tudo o que está errado, que mostra o que está certo. Nem sempre é fácil saber onde está o certo e o errado, mas a mulher do fim do mundo busca para encontrar o lado melhor da vida”. Quando olha hoje para o Brasil, o seu turbulento e dividido Brasil, vê muito que a preocupa. “Está um pouco melhor do que quando era jovem, mas ainda com demasiada dureza, demasiados problemas. Temos ainda muito que caminhar e lutar”. Preocupa-a especialmente “muita coisa voltando na cabeça de muita gente”. Preocupa-a “o ódio e a violência da vingança”. Fala especificamente, do racismo e da homofobia - ela que em 2002, em Do Cóccix até o Pescoço, lançou o verso acusador "a carne negra é a mais barata do mercado". “Quem discrimina tem medo. Odeia essa outra pessoa que está também guardada dentro de si e não tem coragem de assumir. Por isso diz ‘eu não sou negro’, ‘eu não sou homossexual’. Mas ele é tudo isso. Só tem medo de se encontrar”.

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Elza Soares esteve em Portugal várias vezes. Em cima, ao centro, em 2004, no Teatro Rivoli fotos: STEPHANE MUNNIER / Nelson Garrido / Marcos Hermes

Procurar sempre

Impressiona a força que a anima, a garra que põe em cada acção, a sede de futuro que mantém intacta. Em 2014, a realizadora Elizabete Martins Campos assinou um filme, misto de documentário e ficção, dedicado a Elza Soares. O título é retirado de uma frase dela: “My name is now”. Dois anos depois, diz ao Ípsilon que ainda lhe falta muito, tanto, para fazer. “Só procurando vou descobrir. É isso que nos ensina a vida. A procurar sempre”.

Depois da separação de Garrincha, em 1982 (o craque morreria no ano seguinte), Elza Soares sofreria a morte do filho único de ambos, Garrinchinha, em 1986, vítima de um acidente de viação. Abandonou o Brasil e passou os anos seguintes entre os Estados Unidos e a Europa. O regresso ao Brasil não foi auspicioso. Parecia que a sua estrela se tinha apagado e que a sua memória era luz a brilhar trémula no passado. Pouco a pouco, renasceu.

A forma desinibida com que exibia a sua sensualidade, já sexagenária, e a defesa de sempre dos direitos LGBT ergueu-a a ícone da comunidade gay brasileira. Os pequenos cabarets em que actuava nos anos 1990 foram-se transformando em salas maiores e o público foi redescobrindo aquela mulher furacão a quem ninguém conseguia ficar indiferente. Em 2009, em antecipação de uma passagem por Portugal, para actuar na Casa da Música, um espectador ouvido pelo PÚBLICO na apresentação do seu novo espectáculo, em São Paulo, dizia o seguinte: “Elza é um mito de ópera a cantar samba, a cantar o Brasil e a esquizofrenia deste povo que tão bem conhece”. Nessa altura Elza Soares, fénix, já renascera pela enésima vez.

Já gravara esse grande álbum intitulado Do Cóccix até o Pescoço. Já tinha a nova vanguarda paulista de olho em si. Não demoraria até se encontrar com ela, frente a frente, no Eslavo Samba de Cacá Machado. A Mulher do Fim do Mundo estava a caminho. Até chegar a ele, passaria por um grave problema de coluna que a obriga, hoje, a cantar sentada e a prescindir dos altíssimos saltos agulha que usava há décadas. Enquanto o gravava viu morrer mais um filho, aos 59 anos, vítima de complicações decorrentes de uma infecção urinária. Em Agosto de 2016, confessa ao Ípsilon. “A música é um remédio para a alma, entendeu? Você não tem dor enquanto canta. Você não olha quem é ruim, quem está lhe fazendo mal. Quanto canto está tudo bem. Cantar é tudo”.

Mulher do fim do mundo, o extraordinário tema título do seu álbum mais recente, começa com os seguintes versos: “Meu choro não é nada além de carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”. Terminará com Elza Soares a entoar aquilo que nos disse. “Mulher do fim do mundo eu sou / Eu vou até ao fim cantar / Me deixem cantar até ao fim”. Voz feita força de vida, feita vida ela mesma. Elza Soares é enorme.

LER "Lágrimas de samba", crítica de "A Mulher do Fim do Mundo". PorJosé Marmeleira

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