Compromissos e alternativas para a próxima legislatura

A renovação da democracia portuguesa exige a reforma deste sistema. Exigem-se aqui compromissos.

1. A política deve ser ao mesmo tempo competição e cooperação, alterar aquilo que deve ser alterado, continuar aquilo que merece ser continuado. Tem que fazer parte de uma desejável alternativa democrática, a clarificação de diferentes prioridades estratégicas, mas não se deve fazer tábua raza da governação do passado.

Adoptar esta perspetiva exige que se clarifiquem os espaços em que os compromissos são desejáveis e se identifiquem as áreas em que as alternativas são necessárias. Trato aqui de alguns exemplos tendo como pano de fundo, debates ocorridos na conferência Gulbenkian do ano passado, vertidos em artigos agora publicados em livro (1). 

2. A reforma do sistema eleitoral discute-se há décadas. Aquando da Constituinte de 1976, Portugal era uma novíssima democracia e a iliteracia, filha do Estado Novo, predominava. Nessa altura, desenharam-se normas enquadradoras do sistema eleitoral muito fechadas e bloqueadas à participação dos cidadãos, o mesmo é dizer dando muito poder aos diretórios partidários e negando a possibilidade de qualquer ténue personalização do voto. Quatro décadas volvidas,  manter o sistema eleitoral fechado, e bloqueado, é dar uma espécie de atestado de menoridade às cidadãs e cidadãos eleitores portugueses. Há vários métodos de abertura de listas no ato eleitoral, que preservam a proporcionalidade, alguns compagináveis com a atual constituição pois baseados no método d’Hondt (voto preferencial em lista, voto duplo em circulo uninominal e regional ou nacional) outros necessitando uma ligeira emenda constitucional (voto único transferível, porque é um método de quota e a Constituição impõe o método d’Hondt).  Os grandes partidos tradicionais (PS e PSD) nunca quiseram chegar a acordo, hipoteticamente porque PSD queria a redução da dimensão da Assembleia.  Os portugueses são dos povos mais insatisfeitos com a democracia e isso deve-se, por um lado, a uma insatisfação com o seu desempenho económico e político, mas também institucional.  Neste momento, o PS inscreveu no seu programa o voto em círculo uninominal, necessariamente voto duplo (semelhante ao alemão), ou seja conforme estabelece a Constituição. Círculos de propositura, mas não de apuramento que continuará a ser proporcional. Recorde-se, porém, que nas anteriores eleições o PSD inscreveu no seu programa a reforma do sistema eleitoral.  A renovação da democracia portuguesa exige a reforma deste sistema. Exigem-se aqui compromissos.

3. Outro objetivo central desta nova legislatura deve ser a requalificação do Estado, a simplificação da sua relação com os seus beneficiários (famílias e empresas) e a motivação dos seus servidores. Neste campo a atuação do atual governo, foi algo amadora, e sofreu de um forte enviesamento ideológico contra o sector público. Amadorismo na forma como pensou ser fácil cortar nas “gorduras” do Estado sem violar a Constituição, ou na ideia peregrina que a redução do número de ministérios faria, só por si, diminuir  a despesa pública.  O governo descurou completamente a questão da motivação e dos incentivos na administração pública. A política casuística de cortes salariais, o congelamento das promoções e progressões nas carreiras, o progressivo envelhecimento dos serviços, a suspensão dos efeitos da avaliação de desempenho, a desqualificação de entidades de formação (como o INA), a desorçamentação, a instabilidade nos serviços devido a sucessivas reformas mostraram que não houve nenhuma estratégia para o Estado que não fosse o seu emagrecimento. Um Estado depauperado, envelhecido e desqualificado é um Estado fraco. E um Estado fraco é facilmente capturado pelos interesses privados, seja nos contratos que realiza, nas concessões que faz, na regulação que efetua, ou nos serviços que presta. É necessário, e urgente, reverter esta tendência de desqualificação do Estado, dando estabilidade, e alguma previsibilidade, às relações laborais no Estado, dando confiança aos seus funcionários e formação adequada aos seus quadros seja na administração central, regional ou local.

4. A justiça intergeracional em geral e a reforma da segurança social, em particular, são um dos tópicos centrais que atravessarão a próxima década. Nesta legislatura houve, em vários formatos, cortes de pensões, mas não se vislumbrou uma estratégia nem houve nenhum diálogo com o principal partido da oposição e outras forças políticas. Só após chumbos do Constitucional a maioria percebeu que é uma questão de regime e intergeracional. É um problema sério. De acordo com a Comissão Europeia (Ageing Report 2015) só há quatro países em que até 2025 o crescimento das pensões no PIB foi superior ao nosso. Em contrapartida, estamos próximos da média europeia quanto à taxa de reposição de salário por pensão, nesse ano, e o peso da despesa no PIB irá gradualmente descer de 2030 a 2060. Há duas perspetivas em relação à segurança social, para além das diferenças no diagnóstico e nos números de partida. A primeira, que foi defendida no documento do grupo dos economistas proposto pelo PS, e incorporada no programa de governo deste partido, é que é necessário explorar até ao limite o sistema atual de repartição, tornando-o mais justo pela convergência das regras da CGA e do regime geral da Segurança Social, combatendo a evasão contributiva e alargando a sua base quer em termos de fontes de financiamento quer apostando na criação de emprego e no crescimento económico. Uma outra abordagem, que parte da premissa da insustentabilidade do atual sistema, visa a criação de outros pilares do sistema, nomeadamente uma componente de capitalização. A diferença reside em que o primeiro é mais redistributivo, mas tem menores incentivos individuais para a poupança na velhice, o segundo é mais reprodutor de desigualdades, mas tem maiores incentivos. Existindo um preço elevado, em termos do aumento das desigualdade, da mudança estrutural do sistema, parece avisado, levá-lo até aos seus limites, proposta do PS.

5. Exige-se na nova legislatura que o novo governo participe ativamente no diálogo europeu, o que manifestamente não aconteceu nesta legislatura. Portugal é dos países que mais tem a beneficiar com o progresso na integração orçamental europeia. Ainda há dias, o socialista e ministro da economia francês Emmanuel Macron e o vice-chanceler social democrata Sigmar Gabriel advogaram em artigo publicado em vários jornais europeus a necessidade de se ir mais longe no projeto europeu, indo para além das reformas estruturais e institucionais no caminho de uma maior harmonização social e fiscal que crie uma base comum para a concorrência europeia, mas evite políticas de competição fiscal e de dumping social que só poderão levar a distorções na concorrência e a uma competição  que leve as taxas de tributação (do capital que é o factor mais móvel) para mínimos não compagináveis nem com a sustentabilidade dos Estados, nem com um mínimo de equidade na tributação acrescentamos nós. Não me parece haver dúvida que são os socialistas europeus que mais pugnam pela reforma da arquitectura da União Europeia, fazendo aquilo que qualquer observador da recente crise percebe que é necessário que a União tenha, um mecanismo supra-nacional de absorção de choques assimétricos, que alivie a posição orçamental dos países mais afectados. Advogam, entre outras coisas, a criação de um Fundo Monetário Europeu, um orçamento da área euro,  e “mecanismos de reestruturação da dívida soberana legítimos e ordenados”. Macron e Gabriel vão além dos seus respetivos líderes e algumas das suas propostas chocam com os tratados, que, dada a situação do Reino Unido, não deverão mesmo ser reabertos antes do referendo inglês. Agora há propostas que vão no mesmo sentido de alguma mutualização de riscos, como o esquema de subsídio de desemprego europeu, que complementaria os nacionais, e que há vários anos tem vindo a ser discutido. Portugal tem estado estranhamente ausente deste debate e só passados quatro anos Passos Coelho apresenta uma proposta neste sentido. O argumento de alguns, de que era necessário arrumar a casa antes de entrar neste debate, não colhe. Até porque, com a dívida ao nível que está, a casa está longe de estar arrumada. 

(1) Viriato Soromenho-Marques e Paulo Trigo Pereira (coord.), Afirmar o futuro: políticas públicas para Portugal - volume I, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 

Professor do ISEG/ULisboa

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