Uma Cidade Internacional para a Literatura?

Uma Cidade Internacional da Literatura deverá ser um lugar e uma ideia, um espaço e uma plataforma de encontro e de trabalho que se não esgote apenas em questões de ordem laboral, editorial, sindical ou comunicacional.

Há alguns meses, Le Monde des Livres publicou um interessante e inesperado manifesto, assinado por 33 escritores de várias nacionalidades, propondo, com base num conceito abrangente e inovador, a criação de uma Cidade Internacional da Literatura. O manifesto, que não prescreveu nem caiu no esquecimento, é assinado, entre outros, por Paul Auster (Estados Unidos da América), Javier Cercas (Espanha), Peter Esterházy (Hungria), Pierre Bayard, Pierre Michon, Nancy Huston, Ersi Sotiropoulos (Grécia) e Alberto Manguel (Canadá).

Mesmo com a crise estrutural que a Europa atravessa, a França continua a ser uma das capitais internacionais do livro, não só pela quantidade de obras publicadas, pela sua diversidade temática, pela política de preços que acessibiliza a edição ao grande público e também pela enorme rede nacional de pequenas e médias livrarias, muitas delas funcionando como activos centros culturais onde se realizam debates, exposições e evocações de autores e obras. É, pois, natural que um projecto com esta dimensão e alcance surja em território francês, tentando abrir-se ao mundo.

Independentemente das tecnologias que lhe asseguram a difusão, o livro continua a ser um poderoso pilar da partilha de saberes. O livro e a leitura constituem importantes factores de progresso e entendimento crítico da realidade, sendo raros os momentos em que se debate a vida cultural de uma região ou de um país sem se dar a este sector criativo e industrial o relevo que ele amplamente merece. Esse destaque resulta da circunstância de o livro envolver vertentes fundamentais como o saber, a educação, a cultura, o sentido da liberdade e a própria emancipação social. Quem lê e sabe o que e por que lê torna-se seguramente mais livre e mais seguro do caminho que pretende percorrer, constrangido ou não pelas dificuldades de índole social, económica e financeira que se multiplicam em seu redor.

Mas o livro é também um importante factor nos processos de educação artística que cobrem as áreas não literárias. A sociedade contemporânea, sobretudo em tempo de mudança profunda de paradigma como resultado da expansão de novas tecnologias cada vez mais avançadas e sofisticadas, não pode ignorar que o livro e a leitura estruturam a sua vida quotidiana e a sua perspectiva de futuro. O livro e a leitura não valem apenas pelo enriquecimento que trazem às vidas individuais, impondo-se também, visivelmente, pelo modo como valorizam a nossa vivência colectiva, num tempo de incertos processos evolutivos com muitas contradições, interrogações e ameaças de permeio.

Por tudo isto, quem decidiu avançar com a subscrição do manifesto por uma Cidade Internacional da Literatura teve presente o facto de existirem em França Cidades da Arquitectura, da Música, do Design, da Banda Desenhada, das Ciências e da Indústria, tendo ficado esquecida a Cidade da Literatura. No entanto, existem casas da literatura e do leitor em países como a Alemanha, a Itália ou a Espanha, variando os nomes, mas não os conceitos fundadores e operativos. Essas casas têm como objectivo dinamizar o debate em torno da vida do livro, envolvendo, naturalmente, os escritores e os editores. Também são movidas pelo propósito de receber escritores exilados e de darem voz aos seus anseios e prioridades de comunicação em torno de causas justas.

Uma Cidade Internacional da Literatura, defendem os subscritores do manifesto, deverá ser um lugar e uma ideia, um espaço e uma plataforma de encontro e de trabalho que se não esgote apenas em questões de ordem laboral, editorial, sindical ou comunicacional, devendo aspirar a ser mais e melhor e abarcando a ficção narrativa, a poesia, o ensaio, o teatro e o ensaísmo com acções criativas e apelativas que atraiam e fidelizem novos públicos e encorajem os já existentes. Isto faz ainda mais sentido quando a extrema-direita ganha terreno e voz própria em vários países da Europa, com a própria França à cabeça. Onde está o livro costumam estar as ideias, e as ideias fomentam o debate num quadro de diversidade e alternância.

Tudo leva a crer que o objectivo central deste projecto é integrar esta Cidade Internacional da Literatura dentro da própria cidade, contribuindo para pôr o livro e a leitura ao serviço das dinâmicas de transformação social e espiritual.

O projecto desta Cidade Internacional, que também deve estimular os portugueses ligados a este sector, mostra que a Europa atingida pela crise, que também deixou marcas pesadas na fase inicial do Mundial do Brasil, não será por carência de ideias que desistirá de delinear um futuro que represente as mudanças que abrem portas à esperança, à confiança e ao futuro, caiba o que couber nesta palavra, a começar pelo valor da liberdade.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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