Miró em Portugal para salvaguarda do Estado

É o património do Estado e, por consequência, o interesse de quem paga que aqui se encontra em causa.

A situação das obras de Miró acaba de conhecer um novo desenvolvimento, talvez inesperado para uns, mas coerente com o que tem sido a posição do poder judicial sobre esta matéria complexa.

Saliente-se, porém, o facto de, no mesmo dia, o Tribunal de Contas ter concluído que o contrato celebrado com a Christie's para que sejam leiloadas as 85 obras do pintor catalão não foi submetido a fiscalização prévia. Estas duas posições são reveladoras de que os poderes públicos não deixam o “dossier” Miró cair na valeta funda e irremediável do esquecimento. Persiste, entretanto, uma interrogação, muito mais filosófica dos que estética ou política: como teria o pintor reagido a esta situação se, mesmo tendo vivido muito, pertencesse ainda ao cada vez mais dilatado número dos vivos, sobretudo fora desta Europa em crise?

É sabido que Joan Miró, cuja obra e vida são pontos cimeiros da vida e da memória cultural de Barcelona ou de Palma de Maiorca e da arte mundial, foi um artista cimeiro no século XX e que a sua obra vasta e de uma impressionante coerência desafiou conceitos e gostos tidos como definitivos. Ainda hoje, quem visitar a casa-museu do artista em Palma de Maiorca ou a bela fundação que tem o seu nome, em Barcelona, dar-se-á conta da forma como o pintor lidou com ideias, cores e traços que se converteram num retrato seu para o mundo conhecer sempre que se interrogasse sobre a situação da pintura mundial e, em particular, da sua e do movimento surrealista em sentido mais lato.

Esta desafiadora complexidade veio justamente configurar-se como o oposto da  linearidade de um secretário de Estado, num governo sem dinheiro nem particular interesse pela cultura e pelos seus artistas e criadores. Todo este “negócio” tem sido revelador do modo como a governação lida mal com este tipo de problemas e não tem uma ideia justa acerca do contributo da arte para que um povo há quase nove séculos soberano possa conviver com a arte, numa perspectiva orientada para a defesa do património nacional. Mas sobre isso têm corrido nesta secção do “Público”rios de tinta que Miró, pela certa, muito gostaria de poder usar no universo plástico das suas telas mágicas.

Tenha-se presente que esta decisão do Ministério Público é já a terceira desde Fevereiro e que o objectivo primordial da medida é “evitar que as obras de Miró, que vieram à posse e titularidade do Estado após a nacionalização das acções do Banco Português de Negócios, fossem colocadas no mercado externo sem que a administração do património cultural determine a abertura de um procedimento de inventariação e classificação das referidas obras de arte”. É difícil ser mais claro quando se fala deste assunto.

Desta forma, pretende o Ministério Público evitar que se cumpra o amargo presságio de vermos sair as obras antes do final do mês. Foi com um argumento semelhante que os Capitães de Abril decidiram derrubar o regime há 40 anos, acrescentando o princípio segundo o qual, dilatando a espera, haveria muito mais detidos no 1º de Maio e de que eles próprios haviam de estar no lote dos interrogados em nome do “futuro do regime”.

O Ministério Público fez saber na fundamentação desta nova e sempre oportuna providência cautelar que age “em defesa do património cultural e dos bens do Estado”. E procede da forma correcta ao fazê-lo, não vá alguém ter a veleidade de imaginar que se age assim por irritação pessoal ou por mero preconceito ideológico ou administrativo. Nada disso: é o património do Estado e, por consequência, o interesse de quem paga que aqui se encontra em causa.

Merece, por outro lado, destaque o facto de todo este debate prosseguir, num país onde a cultura, à míngua de apoios oficiais, vai travando uma dura luta pela sobrevivência, em torno de uma colecção de obras deste enorme pintor  contemporâneo. O Tribunal Administrativo de Lisboa tratou, de imediato, de dar vigência à medida do Ministério Público que, por seu turno, o presidente da Parvarolem afirma desconhecer. Uma coisa parece certa e definitiva: com este nível de intervenção do poder judicial, a Christie's vai sentar-se para esperar e o governo vai ficar sem saber o que pode ainda fazer ou dizer. O mal foi feito, o caldo ficou tristemente entornado e, uma vez mais, a equipa que nos governa mostrou que não sabe o que fazer quando a arte o desafia. Haja depois quem diga que a cultura é um assunto menor perante as grandes e inquestionáveis prioridades do Estado. Estamos a ver.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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