Populismo, a nova moeda europeia

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1. A pergunta é óbvia: por que razão o Partido Socialista não consegue distanciar-se de uma coligação que aplicou um brutal regime de austeridade a um país social e economicamente tão frágil? A resposta é complexa. Comecemos pelo Governo. Passos e Portas estabeleceram com um profissionalismo invejável a sua lista de medidas a anunciar ao longo da pré-campanha para anular os aspectos mais controversos das suas políticas. Alguns exemplos.

O Governo sabia perfeitamente que a lei do enriquecimento “injustificado” nunca passaria no Tribunal Constitucional. Não era esse o seu objectivo. Era apenas mostrar que estava ao lado daqueles que estavam dispostos a denunciar o vizinho do BMW. A lista de pedófilos aberta à consulta popular era outra medida do género e com os mesmos objectivos. A pedofilia alimenta tal repulsa que tudo se torna justificado. Mas também não passa o crivo do Estado de direito, o que é fácil de compreender racionalmente, mesmo que difícil emocionalmente. A terceira bandeira foi a alteração à lei do aborto. Não tenho grandes dúvidas de que Passos Coelho pensa mais ou menos o mesmo que eu sobre a matéria. Mas era preciso dar alguma coisa ao CDS. Sem mudar o acesso, acrescentou a humilhação, voltando a colocar um estigma. Não há palavras. A coligação destacou dois temas para a campanha: demografia e desigualdade. Mais uma vez, o CDS foi contemplado com iniciativas que visem famílias numerosas, com a devida vénia à Igreja. O que Portugal precisa é que uma taxa de natalidade das mais baixas do mundo suba um pouco mais, pelo menos até ao segundo filho. Isso consegue-se com empregos estáveis, que não há, apoios sociais inteligentes e outra mentalidade nas empresas. Havia um problema com a imigração? Pois bem, o Governo apresentou um novo programa, o VEM, do qual já ninguém fala, para mostrar a sua vontade de ajudar imigrantes empreendedores a voltar à pátria para empreender. O populismo do Governo foi bastante mais longe, no entanto. A habilidade com que colocou os jovens contra os velhos é quase arrepiante. Nenhuma sociedade civilizada pode viver assim. Resta referir que a sua mensagem central é fácil: o mais seguro é não arriscar uma mudança. Até às eleições, o PSD portar-se-á com total disciplina. Sempre foi assim. Mas não há partido mais célere a derrubar um líder que não lhes garanta o poder.

2. Na posição oposta está hoje o Partido Socialista. As “sensibilidades” sempre existiram e deram muito trabalho aos líderes, incluindo Mário Soares. António Costa (também) ganhou esmagadoramente a Seguro nas primárias porque era o passaporte seguro para a vitória. Ora, não é isso que está a acontecer. Costa resolveu seguir o caminho das propostas realistas e, por isso mesmo, complexas, que são sempre muito mais difíceis de fazer passar. Muita gente reconheceu que o líder socialista colocou o debate eleitoral num outro nível, correspondendo a uma exigência crescente de acabar com as falsas promessas que descredibilizavam os partidos políticos. A própria crise acentuou essa necessidade, na medida em que muita coisa depende de Bruxelas. O problema é que, feita a constatação, esse outro nível parece estar afastado do debate quotidiano, que continua prisioneiro das mensagens primárias ou dos pequenos e grandes faits divers. Costa teria sempre um caminho muito estreito para afirmar uma alternativa dentro dos compromissos europeus. Os mesmos que exigiam medidas quantificáveis, afastam com desdém as suas contas. Os mesmos que exigiam inovação passam ao lado das propostas “revolucionárias” que Mário Centeno trouxe para o programa. Há cinco anos, entrevistei-o sobre a reforma do mercado de trabalho numa série de entrevistas sobre o futuro do país. A entrevista teve imensa repercussão, sobretudo em sectores mais à direita, porque cortava com as meias reformas, com as ideias feitas e com os interesses instalados. Quem as quer discutir agora? A crítica feita a António Costa é a falta de uma ideia mobilizadora e credível ao mesmo tempo. Não está sozinho, é esse o maior problema do centro-esquerda europeu, se quiser evitar cair num discurso populista à Jeremy Corbyn, o candidato à liderança do Labour com ideias que foi buscar aos anos 80 e que já nessa altura impediam o partido de ganhar o poder. Acresce que o primarismo da mensagem da coligação não tem estados de alma. Ouvir Marco António Costa dizer que o PS quer acabar com a segurança social seria quase divertido, se não fosse tão grave. E ouvi-lo dizer isso depois de Pedro Passos Coelho ter feito o discurso que fez quando apresentou o programa da coligação, é ainda mais extraordinário.

3. E aqui chegamos a Ferreira Leite. Numa entrevista ao Sol, Costa afirmou que se identifica com muitas das ideias da antiga líder do PSD, respondendo a uma pergunta directa. Quando Pedro Passos Coelho apresentou as linhas gerais do programa da coligação, dizendo algumas verdades a que ninguém prestou muita atenção com aquele ar de bom rapaz que é a sua arma mais eficaz (a milhas do discurso pomposo e sincopado de Portas), as críticas foram essencialmente sobre um programa vago, sem compromissos quantificáveis. O que é verdade. Mas foi Ferreira Leite quem, no seu programa habitual com Paulo Magalhães, resumiu numa frase a essência da intervenção do primeiro-ministro: admitiu que o líder do PSD apresentou escolhas muito importantes e legítimas sobre o futuro do modelo social, o único problema é que não eram as suas. “Sou social-democrata”. Costa já disse e repetiu que as opções da coligação nesta matéria são ideológicas e que visam uma transformação radical do Estado social. Mas ainda não o fez com a clareza de Ferreira Leite. Teme porventura que venham dizer que afinal é um perigoso despesista e que Portugal não pode dar-se a esse luxo. Não pode ter medo. Estamos a falar de uma mudança enorme. A frase mais repetida pelo primeiro-ministro foi a “liberdade de escolha” dos portugueses em matéria de saúde, de educação e de reforma. Não se preocupou em explicar o que é que isso significaria. O plafonamento das pensões é a parte mais fácil de explicar e Costa já a explicou. Na saúde e na educação, as duas coisas mais inclusivas e estruturantes de qualquer democracia, é mais difícil. No limite, como disse Ferreira Leite, é criar uma saúde e uma educação para pobres e outra para o resto. É mais ou menos o que se passa nos EUA, mesmo que o Obamacare venha atenuar muito esta desigualdade. Com uma pequena diferença que não é só cultural mas também material: o rendimento per capita dos EUA é quase três vezes superior ao nosso. Com o fraco rendimento da classe média em Portugal, ideias dessa natureza acabarão por esbarrar com a própria realidade. Não será certamente por aí que Passos vai combater as desigualdades.

4. Muita gente diz que o PS deveria reconhecer que a economia já cresce e o emprego já sobe. É verdade. Com um pequeno problema adicional. A estimativa rápida do Eurostat, divulgada há meia dúzia de dias, é um alerta para a nossa maior falha: o fraco crescimento potencial da economia. O PIB cresceu apenas 1,2% em relação ao mesmo período do ano passado na zona euro. Nada de particularmente brilhante, mas com excepções. Basta ir aos países intervencionados. A Espanha cresceu 3,1% relativamente ao mesmo trimestre do ano passado. A Irlanda ainda não tem a estimativa do segundo trimestre mas a do primeiro já chega: 6,1%. Portugal ficou-se pelos 1,5% que já seria qualquer coisinha se a Grécia, no estado em que está, não tivesse conseguido ela própria 1,4%. Dir-me-ão que nada disto interessa para ganhar eleições. Talvez não mas é isso que é lamentável. O grande drama desta crise europeia é que ela abre as portas a uma nova realidade política em que quem ganha é cada vez mais o populismo. Original ou emprestado. Como responder a isto? É difícil.

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