O ar que expiramos pode desbloquear o diagnóstico precoce de cancro do ovário

O diagnóstico é tardio e não há rastreio ou biomarcadores que permitam antecipar um cancro que mata mais de 400 mulheres por ano. Uma equipa da Fundação Champalimaud está a testar a possibilidade de diagnosticar a doença através da nossa expiração.

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Estima-se que, todos os anos, cerca de 600 mulheres sejam diagnosticadas com cancro do ovário em Portugal DR

É silencioso, com poucos sinais visíveis e há muito desconhecimento sobre a doença. O cancro do ovário é diagnosticado tardiamente e isso afecta o prognóstico para as pacientes. Uma equipa da Fundação Champalimaud procura agora desbloquear este problema através de um estudo clínico que parece simples: fazer o diagnóstico através da nossa expiração.

Esta é uma das potenciais técnicas para combater um dos cancros mais letais em mulheres e criar soluções para a dificuldade em diagnosticar o cancro em fases precoces da doença. E se os números são menores do que os do cancro do pulmão, do colón ou do estômago (os mais mortais em números absolutos), a taxa de sobrevivência de uma mulher com cancro do ovário cinco anos após o diagnóstico varia entre os 15% e os 95%, dependendo da fase em que o tumor está – que normalmente é diagnosticado nas fases mais avançadas.

Na Fundação Champalimaud há uma equipa a testar uma forma não invasiva, e sem exames adicionais, de diagnosticar se o tumor é maligno de forma precoce. “As células tumorais produzem alguns compostos que acabam por ser expelidos pela nossa expiração. E o que estamos a fazer é colher esse ar expirado para uma câmara e analisar os compostos”, diz Henrique Nabais, director da Unidade de Ginecologia da Fundação Champalimaud e um dos investigadores envolvidos no estudo.

“Há compostos que são produzidos pelas células cancerosas e que entram no sangue e, depois, são eliminados pela respiração. O ar expirado não tem só CO2 [dióxido de carbono], tem também estes compostos orgânicos voláteis. O sangue, quando passa pelos brônquios, liberta estes compostos, que depois são eliminados pelo nosso corpo de várias formas, incluindo pela respiração”, explica Henrique Nabais. ​

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Máscara utilizada pela equipa da Fundação Champalimaud para colher o ar expirado Fundação Champalimaud

“Se alguns cancros do ovário forem diagnosticados precocemente têm uma taxa de sobrevivência enorme. Como qualquer cancro que é diagnosticado em estadios avançados, o prognóstico acaba por ser sempre pior”, explica Henrique Nabais.

O projecto Gyne-Vox está a ser realizado em colaboração com a equipa de Pedro Vaz, investigador na área do cancro do pulmão da Fundação Champalimaud, para criar uma técnica que analise ar expirado que pode conter compostos orgânicos voláteis, cuja produção aumenta através do metabolismo das células cancerosas ou pela reacção do nosso sistema imunitário a estas células – permitindo assim a detecção precoce de um tumor maligno.

O estudo abarca vários tipos de cancro. Começaram em Janeiro deste ano, no pulmão, e agora estão a ser avaliados os cancros do ovário, endométrio, colo do útero, e, futuramente, do pâncreas. “Temos tido muito bons resultados nas fases preliminares – e estamos entusiasmados com isso. Até ao momento, conseguimos, através das análises, distinguir bem entre a doença benigna e maligna”, explica Henrique Nabais. Através de 40 casos para cada tipo de cancro estudado, juntamente com um grupo de controlo, os investigadores conseguiram nesta primeira fase destrinçar os tumores benignos dos tumores malignos.

O estudo ainda é recente, mas pode permitir um diagnóstico rápido, simples e que possibilita uma maior taxa de sucesso no tratamento deste cancro. “Temos este estudo a decorrer na perspectiva de fazer um diagnóstico precoce – vamos ver que resultados teremos no futuro”, conclui Henrique Nabais.

Único factor de risco é histórico familiar

Os factores de risco também são pouco significativos para o cancro dos ovários, excepto no caso de existir histórico de cancro na família. O risco genético é apontado como o mais preponderante, sendo que as mutações nos genes BRCA1 e BRCA 2 têm revelado impacto na previsão da doença, já que estas mutações tendem a aumentar o risco de desenvolver cancro da mama e do ovário. Um estudo publicado no ano passado, publicado na revista Gynecologic Oncology, estimava que 20% das mulheres com cancro do ovário em Portugal apresentavam este tipo de mutações genéticas.

Apesar de os testes genéticos serem uma possibilidade, não são para todas as mulheres. “São apenas para doentes que têm um risco aumentado de desenvolver cancro”, explica Deolinda Pereira, directora do Serviço de Oncologia Médica do Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO-Porto). “Só tem indicação para ser feito um teste genético se já existir um membro da família que tem cancro da mama ou do ovário”, aponta Deolinda Pereira, que tal como Henrique Nabais, participou no estudo publicado em 2021 na revista Gynecologic Oncology.

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Henrique Nabais é investigador e director da Unidade de Ginecologia da Fundação Champalimaud Fundação Champalimaud

“Primeiro, avaliamos a história pessoal e familiar do doente e, se percebermos que o risco é elevado para uma mutação, fazemos o estudo genético. Procuramos fazer este estudo no familiar que teve o cancro”, acrescenta Henrique Nabais, dando conta de que estas mutações genéticas podem ser herdadas de qualquer um dos pais (também influencia o cancro da próstata). “Nas mulheres em que há esta mutação, fazemos uma ecografia e um marcador tumoral [um teste que procura proteínas, a CA 125, que é produzida pelas células cancerosas] de seis em seis meses”, acrescenta Deolinda Pereira, que também é investigadora no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto.

As medidas profilácticas e a diminuição do risco passam pela avaliação e acompanhamento regular dos pacientes, ou através de cirurgia para retirar os ovários e as trompas de Falópio. Depois de diagnosticado o cancro do ovário, o recurso à cirurgia para retirar o tumor pode ser o primeiro passo, sendo seguido de quimioterapia.

Ultimamente, uma nova classe de fármacos, chamada “inibidores da PARP”, tem demonstrado bons resultados na prática clínica, com maior eficácia nas doentes com as mutações BRAC (e para quem está indicada esta terapêutica). “Evita recidivas ou as recidivas são muito mais tardias. Tenho uma doente a ser tratada com um dos inibidores da PARP que já tinha tido uma quinta recidiva do cancro do ovário. E agora está há cinco anos sem reincidência. Isto para os médicos veio alterar muito a história da doença: alterámos a sobrevivência destas doentes e os seus resultados”, aponta Deolinda Pereira.

Esta foi o último grande avanço, diz a oncologista. Ao longo dos últimos anos, testaram-se novas armas de quimioterapia, mas sem sucesso. E, como indica Deolinda Pereira, “desde 1996 que o regime de quimioterapia se mantém o mesmo”.

À procura de um biomarcador

O estudo genético e o acompanhamento regular são os métodos utilizados para diagnosticar. Ao contrário de outras doenças, ainda não existem biomarcadores moleculares que permitam procurar sinais de que o tumor pode vir a desenvolver-se.

Na Universidade de Lehigh (em Bethlehem, na Pensilvânia, Estados Unidos), uma equipa de cientistas propõe que a fluorescência das células e a machine learning (aprendizagem automática) podem criar uma “impressão digital” para o cancro do ovário. Através de nanossensores que sinalizam (através de um espectro de luz) tudo o que encontram nas células, os investigadores esperam detectar alterações celulares que possam evidenciar biomarcadores para o cancro do ovário. “É como termos 20 pares de olhos que vêem tudo o que está a acontecer. Nenhum olho humano é assim tão bom, mas, em conjunto, podem ser treinados para ter melhores resultados do que os métodos actuais de diagnóstico”, disse, em comunicado, Yoona Yang, uma das autoras do projecto divulgado em Maio.

“A investigação nesta área esteve parada durante muitos anos, porque não era um cancro muito frequente. Mas tem adquirido maior importância e têm surgido uma série de trabalhos sobre fármacos ou novos ensaios clínicos que nos podem ajudar no futuro”, reflecte Henrique Nabais. O objectivo, de acordo com os dois investigadores portugueses, é ter um diagnóstico mais precoce que permita ajudar as quase 600 mulheres diagnosticadas todos os anos com cancro dos ovários.

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