Cancro hereditário na mulher: qual o risco?

A probabilidade de ter cancro da mama durante a vida em doentes com mutações BRCA1/2 pode atingir os 90%.

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Alguém identificado com alterações genéticas específicas, quer com diagnóstico de cancro ou não, deverá fazer uma vigilância intensiva Unsplash/National Cancer Institute

O cancro mais diagnosticado na mulher é o da mama. Segundo a Organização Mundial de Saúde/Globocan, em 2020, a estimativa de novos casos em Portugal rondaria os 7000, o que corresponde a 26% de todos os casos de cancro diagnosticados nacionalmente. No entanto, o impacto da pandemia poderá ter condicionado estes valores, eventualmente, vindo a aumentar ainda mais em 2021, por atrasos nos exames de rastreio, que recentemente a Ordem dos Médicos estimou em cerca de 400 mil, ou ainda nos exames diagnósticos.

Recordo uma situação que acontece na minha prática clínica: mulheres diagnosticadas com cancro da mama aos 35 anos de idade, por oposição à idade mediana de diagnóstico, 62-65 anos. Apesar da possibilidade do diagnóstico acontecer em qualquer idade, os casos em doentes com menos de 40 anos correspondem a cerca de 5% do total de casos. Note-se que são mulheres cuja idade está, inclusivamente, abaixo da prevista nas recomendações de exames de rastreio populacional. Então, qual a importância da idade de diagnóstico no cancro da mama (ou ovário) neste contexto? Relaciona-se com o risco de cancro hereditário (cerca de 10% dos casos), que será maior se ocorrer em idade mais jovem. No entanto, pode acontecer que nenhuma alteração genética com significado clínico seja identificada, mas, ainda assim, poderá ter implicações (por exemplo, a idade de rastreio nos familiares pode iniciar-se mais cedo do que na população geral). Existem critérios utilizados para identificar indivíduos de alto risco de cancro hereditário, alguns até independentes da idade de diagnóstico. Estes critérios, normalmente avaliados em consulta de Oncologia, se estiverem presentes justificam a realização de testes genéticos adequados à situação.

Se for identificada uma mutação genética que pode conferir risco de cancro da mama e/ou ovário (entre outros tumores), é desencadeado um conjunto de ações, dependentes da alteração em causa. Por exemplo, a probabilidade de ter cancro da mama durante a vida em doentes com mutações BRCA1/2 pode atingir os 90%. E, para além do cancro da mama, ainda se associam a cancro do ovário, primário do peritoneu, trompas de Falópio, pâncreas, entre outros. Alguém identificado com estas alterações genéticas, quer com diagnóstico de cancro ou não, deverá fazer uma vigilância intensiva e poderá ponderar cirurgias preventivas (como foi o caso da mediática mastectomia bilateral da atriz Angelina Jolie há uns anos).

Tanto o desenvolvimento do cancro da mama como cancros ginecológicos podem relacionar-se com fatores hormonais da mulher, como idade da 1.ª menstruação, idade da menopausa ou gravidezes, para além de muitos outros aspetos comportamentais e ambientais. Estes, e outros fatores, podem contribuir para que na mesma família, com a mesma alteração genética, possa haver diferenças nas idades de diagnóstico e gravidade dos casos de cancro.

Mas não se pense que o cancro hereditário está apenas limitado às mulheres: um indivíduo do sexo masculino que herde estes mesmos genes pode ter risco de cancro da mama, próstata, pâncreas ou outros. Este é também um dos motivos da importância da referenciação para a consulta de Risco Familiar.

Ao contrário do cancro da mama, não existe demonstração de impacto na sobrevivência das doentes com a realização de rastreio dos cancros ginecológicos ou pâncreas na população geral (portanto, sem conhecimento do risco de cancro hereditário). Ainda recentemente, o grande estudo UKCTOCS, que envolveu mais de 200 mil mulheres seguidas por mais de 15 anos, não demonstrou benefício na sobrevivência das doentes rastreadas para cancro do ovário.

Assim, é da maior importância estar alerta para sinais e sintomas suspeitos que deverão motivar avaliação médica — entre os quais, aumento do perímetro abdominal, perda de peso involuntária, dor ou desconforto pélvico ou enfartamento precoce, em especial se existir agravamento progressivo ou ausência de melhoria com terapêutica. Com a evolução dos exames diagnósticos e terapêuticas, estes conceitos podem alterar esta realidade no futuro. Isto é, à medida que a acuidade dos exames diagnósticos aumentar, e um dos exemplos em estudo é a deteção em amostras de sangue de células cancerígenas, ou seu material genético, o diagnóstico poderá ser ainda mais precoce. Por outro lado, com tratamentos cada vez mais eficazes, o rastreio e diagnóstico, para além da prevenção do cancro, poderão vir a fazer uma diferença significativa num conjunto mais alargado de cancros.

Outra vertente, cada vez mais relevante na Oncologia, relaciona-se com as alterações genéticas hereditárias (e não só) que podem constituir alvos de tratamentos da doença oncológica. Assim, ter acesso a estes dados precocemente pode vir a revelar-se extremamente útil na escolha de tratamentos ou ensaios clínicos em determinadas fases da doença. É uma área em rápida e significativa evolução, pelo que a comunidade científica acompanha de perto os seus desenvolvimentos.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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