O “terror” na Azovstal: “Tinha medo de sair, até para apanhar algum ar fresco”

Natalia Usmanova foi uma das mais de cem pessoas retiradas da siderurgia de Mariupol no domingo, onde passou “dois meses de escuridão”, abrigada nos túneis subterrâneos.

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Natalia Usmanova, funcionária da Azovstal, abrigou-se dos bombardeamentos russos na fábrica Reuters/ALEXANDER ERMOCHENKO

Começaram no domingo a ser retiradas as primeiras pessoas que se encontram há semanas encurraladas nos túneis subterrâneos da siderurgia Azovstal, em Mariupol. Os grupos retirados ainda não chegaram ao centro de acolhimento de Zaporijjia esta segunda-feira, mas já relatam o “terror” vivido nos abrigos do complexo industrial.

Depois de várias tentativas falhadas de um cessar-fogo que permitisse evacuar o complexo industrial, a operação foi iniciada este fim-de-semana, com o contributo das Nações Unidas e da Cruz Vermelha Internacional.

Natalia Usmanova foi uma das mais de cem pessoas retiradas da fábrica na cidade portuária no domingo, onde centenas de civis estão há semanas abrigadas dos bombardeamentos constantes das forças russas, partilhando os túneis com militares ucranianos. Escondida no labirinto de bunkers da era soviética, numa rede que se estende por vários pisos subterrâneos do vasto complexo industrial do tempo de Estaline, a ucraniana de 37 anos diz ter sentido que o coração ia parar nos momentos em que os mísseis russos choviam sobre Mariupol.

“Receei que o bunker não aguentasse, senti um medo terrível”, contou Natalia. Funcionária da fábrica, decidiu abrigar-se em Azovstal com o marido, assim como outros trabalhadores, para se salvar. Passaram assim “dois meses de escuridão”.

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Natalia Usmanova à chegada a Bezimenne Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO
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Natalia Usmanova e outros civis retirados de Azovstal Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO

“Quando percebemos que [as tropas russas] estavam a aproximar-se ficámos cada vez mais assustados, tentámos deixar [a cidade]. Sabíamos dos corredores humanitários, sabíamos das evacuações. Não nos deixaram sair”, disse este domingo aos jornalistas à chegada à vila de Bezimenne, na região de Donetsk, controlada pelos separatistas pró-russos, numa primeira paragem antes de viajar para Zaporijjia.

Quando o abrigo começou a estremecer devido às ofensivas russas, ficou “histérica”, temendo o desmoronamento da estrutura. O medo não a permitiu tentar escapar, e as semanas foram passadas nos túneis. “Não vimos o sol durante tanto tempo”.

“Os bombardeamentos eram tão fortes a cair perto de nós. À saída do abrigo, no cimo de umas escadas, não dava para respirar por não haver oxigénio suficiente. Tinha medo de sair, até para apanhar algum ar fresco”, recorda Natalia.

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Civis retirados de Azovstal, em Mariupol Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO

De rosto aliviado e com lágrimas nos olhos, conta que durante a viagem de autocarro até gracejou com o marido por deixar de precisar de uma lanterna para ir à casa de banho.

“Vamos deixar de utilizar um saco e um contentor [como sanita] com uma lanterna”, disse sorridente, antes de levar as mãos à cara, emocionada. “Não dá para imaginar o que passámos, o terror”.

Sem operação, civis escapam da cidade

Na cidade de Mariupol, 100 mil pessoas continuam à espera que o corredor humanitário criado até à Azovstal seja alargado ao resto da cidade. Essa ideia foi adiada, para já, mas a operação coordenada pela ONU e pela Cruz Vermelha Internacional permitiu que algumas pessoas que não estavam abrigadas na siderurgia escapassem da região.

Os autocarros da operação ainda não chegaram a Zaporijjia esta segunda-feira, mas já começaram a chegar ao centro de acolhimento da ONU residentes de Mariupol que aproveitaram o cessar-fogo de dois dias para escapar do que muitos descrevem como “o inferno”.

Olena Gibert chegou a Zaporijjia em viatura própria. Avisa que ainda há muitos civis presos em Mariupol que querem fugir da cidade, mas não o conseguem fazer devido ao ambiente de propaganda pró-Russa.

“Pessoas sem carro não conseguem sair. Estão desesperadas”, afirmou à Associated Press. “É preciso ir buscá-las. Não têm nada. Nós não tínhamos nada”.

Civis retirados de Azovstal, em Mariupol Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO
Civis retirados de Azovstal, em Mariupol Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO
Valeria (à direita) reencontra a irmã, Aleksandra, em Bezimenne, depois de ter sido retirada de Azovstal, em Mariupol Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO
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Civis retirados de Azovstal, em Mariupol Reuters/ ALEXANDER ERMOCHENKO

Anastasya Dembytska fugiu com a filha, o sobrinho e o cão. Sobreviveram todo este tempo na cidade a cozinhar num fogão improvisado e a beber água do poço. De casa, conseguia avistar a Azovstal nos breves momentos em que arriscava olhar pela janela. “Víamos os mísseis a voar” e nuvens de fumo a pairar sobre a fábrica, descreve.

Deixou para trás a irmã e os pais. Tentou convencê-los a fugir de Mariupol, mas recusaram-se a abandonar a casa, uma das poucas ainda intactas na cidade. Ao New York Times, a mulher de 35 anos descreve a cidade como inabitável, mas refere que nas últimas semanas houve sinais parcos de recuperação – não há luz nem água, mas já existe sinal telefónico intermitente. Nas ruas, começam a surgir alguns mercados com os mantimentos trazidos pelas forças russas.

“Começaram a retirar o lixo, pelo menos. Os corpos, o lixo e os fios que estão espalhados por todo o lado”.

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