Governo das universidades, universidades do Governo. Como pode ser?

O quadro atual da constituição dos órgãos de governo das universidades pode facilmente conduzir à criação de “nichos” partidários no seu seio. O seu valor é multifacetado.

A universidade pública portuguesa, ensino superior latu sensu, é, em geral e com poucas exceções, composta por um corpo docente com vínculo público e pouca mobilidade, muito endogâmica, dependente do Orçamento do Estado, com pouca concorrência e pouca diferenciação pelo mérito. Em consequência, tem globalmente um grau de imunidade muito baixo relativamente a fenómenos de parasitismo por outros setores da sociedade, e uma ética académica por vezes volúvel. Este é um dado fundamental para compreender alguns dos casos do momento, os quais, naturalmente, não vou comentar em concreto.

A independência e a autonomia da universidade é aceite como valor positivo para a sua função de criação intelectual e de fomento do espírito crítico numa sociedade aberta e democrática. Nada disso desvaloriza a função nobre e constitucional de outras entidades coletivas como os partidos, sindicatos ou igrejas. Apenas nos deve alertar paras as virtudes da distância entre todas. O que pretendo ilustrar são as debilidades legais, institucionais e pragmáticas que explicam situações de degradação do papel da universidade.

O quadro atual da constituição dos órgãos de governo das universidades foi criado por uma lei designada de RJIES, em 2007. Procurou modernizar esse processo, revogando, por exemplo, uma modalidade anterior de eleição do reitor pela Assembleia de Escola que se tratava de um análogo das mega assembleias dos partidos leninistas, estalinistas, maoístas. Na modalidade século XXI, determinada no tempo de Mariano Gago, a eleição dos órgãos de governo passou a ser indireta, por um conselho geral composto por professores, estudantes e funcionários e representantes da sociedade civil – as personalidades de reconhecido mérito.

O processo, em teoria bondoso, tem obviamente portas de entrada para a influência externa, como por exemplo a legítima, mas questionável no seu uso académico, orientação política dos professores, o controlo político de estudantes e funcionários por associações de estudantes e partidos políticos ou sindicatos, e a influência partidária nas personalidades externas. Estas portas são usadas recorrentemente numa academia e sociedade de valores volúveis e não existem princípios nem regras que os contrariem. No topo das causas está, decerto, a nossa tradicional complacência com a endogamia e/ou a permissão da imobilidade.

A mesma lei tornou o conselho científico da universidade num órgão eleito – por listas –, ao invés de manter a inerência académica que tornava qualquer professor membro do que Barata Moura identificava como emente, o “claustro” académico. Esta tentação “democrática” é uma porta aberta à influência política e partidária, exatamente no órgão que certifica áreas científicas, cursos, júris de provas e júris de concursos, só para referir algumas competências.

Em resumo, uma boa gestão de influências na eleição dos órgãos de governo e a criação conveniente de um espaço “académico” reservado, que, como se demonstra, o quadro legal e institucional permite com alguma facilidade, o quadro ético não evita e a endogamia consolida, pode facilmente conduzir à criação de “nichos” partidários na universidade. O seu valor é multifacetado. Agregam e reproduzem a influência, oferecem retaguarda estimável nos intervalos do poder e, ainda, com um esforço amenizado, qualificações socialmente reconhecidas, um valor relevante na dinâmica política. Num sistema político partidário pouco escrutinado, o favor é a moeda de referência. Um “nicho” académico deste tipo, como aliás outras estruturas na nossa sociedade, pode ser assim um “minerador de moeda política”.

Os exemplos de áreas académicas oportunistas são universais. Nem todas têm intenção de influência política – podem ocorrer para afirmação de um grupo científico com vontade de se autonomizar ou mesmo de um novo paradigma científico emergente. A tentação da ligação ao poder parece ser mais apetecida em áreas próximas das ciências sociais, como, por exemplo, as Ciências da Educação, a Economia Política ou as Políticas Públicas, curiosamente secessões dos domínios abertos e consolidados da Psicologia, Economia ou Sociologia.

Como se criam e desenvolvem estas bolhas académicas? O primeiro passo é a criação do território na estrutura universitária por decisão dos órgãos de governo e conselho científico. Nesse território estarão professores, inicialmente com credibilidade necessária e suficiente, alinhados com o “projeto” e com potencial político relevante. Esses professores produzirão resultados académicos em circuito tendencialmente fechado, constituirão júris de provas – mestrados e doutoramentos – e de concursos de progressão – professores associados e catedráticos. Umas unidades de investigação e desenvolvimento complementares, umas revistas associadas, um grupo de professores externos próximos do “projeto” para compor júris e, naturalmente, uma presença adequada na comunicação social. Estes ingredientes garantem a segurança académica e o potencial político da iniciativa.

Nada do que menciono conduz necessariamente a permissividade relativamente à influência partidária ou ao relaxamento do rigor científico. Mas deve ser reconhecido que, no nosso ambiente volúvel e endogâmico, essa é uma ocorrência possível. A própria área pode bem acolher professores e estudantes independentes sem qualquer relação com influências externas e que farão trabalho isento e apenas académico. Não é necessário ocupar uma universidade inteira para a usar como instrumento de influência, basta até um nicho circunscrito de uma área protegida, num ambiente – interno e externo – pouco imune e muito complacente.

Nada do que aqui exponho tem como preocupação casos específicos. É uma reflexão simples que se dirige à comunidade e à universidade como corpo institucional, que prezo e considero importante no nosso destino comum. As dinâmicas sociais e políticas são o que são, os participantes têm interesses, relações, dependências e valores. Cabe às instituições desenvolver mecanismos de vitalidade e imunidade que aproveitem as boas práticas e expurguem, by design, as condutas destrutivas. Quando nos damos conta da fragilidade institucional, o mínimo que podemos fazer é iluminar o problema, perguntar o que fazer e suscitar melhorias. Na universidade, esse é também um dever de respeito aos estudantes, que acreditam na universidade como um lugar que ajuda a construir futuros e a desenvolver cidadania.

Professor Catedrático ISCTE-IUL, ex-presidente da FCUL, PhD IST/UTL

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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