Henry Marsh: “Não estamos a ver apenas uma tragédia na Ucrânia, mas um crime terrível”

O neurocirurgião Henry Marsh trabalhou vários anos na Ucrânia. Agora, em Lisboa, conta-nos o que está a fazer para ajudar os médicos ucranianos.

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O neurocirurgião Henry Marsh PAULO CASTANHEIRA/Lua de Papel

Henry Marsh conhece bem a Ucrânia. Durante 30 anos, o neurocirurgião inglês ia para lá durante alguns dias para tratar doentes e ensinar médicos. Agora, em tempos de guerra e mesmo à distância, não tem tirado os olhos do país. Todos os dias fala com amigos que lá estão. “É um apoio pessoal que lhes estou a dar, porque eles estão desesperados e assustados”, diz em entrevista ao PÚBLICO em Lisboa, onde veio para participar na AIMS Meeting 2022, uma conferência biomédica organizada por estudantes de medicina), que se realiza até domingo na Aula Magna.

Com uma fita com as cores da Ucrânia ao peito, Henry Marsh conta-nos como está a ajudar na formação de médicos ucranianos através de um curso online sobre medicina de catástrofes, o que espera que aconteça no país nos próximos tempos e que condições encontrou quando lá chegou em 1992. O experiente neurocirurgião tem marcado presença em Portugal através de livros como Não Faças Mal e Hoje Deu Entrada no Hospital, pela editora Lua de Papel. Em Novembro, será publicado E finalmente.

O que tem feito para ajudar profissionais de saúde na Ucrânia?
Trabalhei na Ucrânia durante 30 anos, o que é relativamente incomum. Sempre soube que a Ucrânia era um país muito importante, porque é onde o liberalismo da Europa Ocidental encontra o regime ditatorial da Rússia. Embora nunca pensasse que fosse haver mesmo uma guerra, agora faz completamente sentido para mim, porque a liberdade e a democracia são uma espécie de ameaça para Putin e o seu sistema.

Portanto, devido à minha experiência na Ucrânia, um cirurgião muito famoso britânico, o David Nott, pediu-me para o ajudar a contactar médicos ucranianos. E foi o que fizemos. Ele é provavelmente o grande especialista a nível mundial de cirurgia em zonas de guerra e organizou um curso de 12 horas sobre um conjunto de ferimentos que podem acontecer devido a armas modernas. E, claro, esses ferimentos são completamente diferentes dos que os cirurgiões têm de lidar numa situação de paz. Um acidente de carro é bem diferente de uma bala a alta velocidade, de uma bomba, ou de uma munição termobárica. Eu, neste curso, apenas fiz uma apresentação na parte dos ferimentos na cabeça, porque a cirurgia no cérebro não é um dos principais problemas na cirurgia de guerra.

Portanto, o que ensinam exactamente neste curso?
Este curso é composto por 12 capítulos com vídeos dos casos mais difíceis do David Nott. Uma das partes mais importantes é sobre um dos princípios da medicina de catástrofes chamado “triagem”. No mundo em paz, acidentes surgem e os casos chegam um a um [ao hospital]. Mas, numa guerra, chegam dezenas ou até centenas de feridos ao mesmo tempo e os recursos são limitados. Não se conseguem tratar muitas pessoas gravemente feridas ao mesmo tempo. Por isso, o que se deve fazer é uma triagem e os doentes feridos devem ser divididos em três grupos: os que viverão se forem operados ou tratados urgentemente; doentes em que se pode atrasar o tratamento durante algumas horas ou, possivelmente, até mais; e os que acabarão por morrer independentemente daquilo que se faça ou que precisem de tanto sangue ou dedicação que outros doentes morrerão se lhes dedicarmos todos os recursos. Nestas situações, tem de se ser implacável e tomar decisões difíceis de forma muito rápida. Esta é uma das grandes lições [do curso]: ter um plano de triagem e médicos para dividir os doentes nesses três grupos.

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Henry Marsh e David Nott têm preparado médicos ucranianos para medicina em zonas de guerra Fundação David Nott

Depois, [no curso] irão aprender sobre ferimentos que nunca viram, sobretudo ferimentos relacionados com bombas. As pessoas podem morrer devido à pressão [interna] causada por uma explosão e até parecer bem por fora. E, claro, depois há amputações complicadas ou grandes perdas de sangue. Também se fala de lesões traumáticas, ferimentos na cabeça, nos pulmões, no fígado, cirurgia plástica… Muito poucos cirurgiões num país em paz terão experiência sobre este tipo de problemas.

É um curso difícil a vários níveis…
É muito difícil! Depois, como muitos dos meus colegas ucranianos disseram que não conseguiriam assimilar tudo de uma vez só, o David Nott fez uma versão mais pequena de três horas com os pontos mais importantes. Agora, estamos a tentar enviá-lo ao máximo de médicos ucranianos que for possível.

Este curso já chegou a quantas pessoas?
Cerca de 400 ou 500 estão a ver o curso desde que o disponibilizámos. E esperemos que venham a ser mais. E, claro, as pessoas que estão em cima do acontecimento não o conseguem ver. Por isso, o que estamos a fazer é preparar médicos em cidades como Kiev, que receio que, provavelmente, terá muitas pessoas feridas muito em breve. Os russos não têm outro plano que não seja bombardear, bombardear e bombardear…

Mas ainda espera que algumas das coisas ensinadas no curso não venham a ser necessárias? Ou espera o pior?
Espero o pior… Haverá ainda muitas mais pessoas mortas ou feridas. Putin não vai parar. Não estamos a ver apenas uma tragédia terrível na Ucrânia, mas um crime terrível. Sou sempre um pouco relutante em fazer comparações com a Segunda Guerra Mundial, mas estou a sentir-me como se estivesse no lado de fora dos portões de Auschwitz e não conseguisse fazer nada – ou muito pouco.

Como é a situação, por agora, em relação à medicina lá? Esta semana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que os ataques a hospitais ou outras instalações médicas têm vindo a aumentar muito depressa.
Ao nível dos bombardeamentos, as condições em Mariupol são horríveis. Não há electricidade e ficaram sem água. Muitos doentes estarão a morrer e não há tratamentos médicos diários. É uma catástrofe! Neste momento, nas áreas fora dos bombardeamentos, os hospitais ainda estão relativamente bem: há electricidade, água e produtos médicos. Mas, se os russos forem em frente, [as condições] depressa se tornarão terríveis em muitas mais cidades.

Tem amigos lá. Como têm trabalhado? Tem falado com eles?
Todos os dias. Estão em Kiev e em Lviv a preparar os hospitais o melhor que conseguem. É tudo o que conseguem fazer…

Está a pensar ajudar a Ucrânia de outras formas?
Neste momento, estou a tentar ajudar o David Nott com contactos com o Governo britânico. Outra ajuda que posso dar neste momento é telefonar aos meus amigos de lá todos os dias. É um apoio pessoal que lhes estou a dar, porque eles estão desesperados e assustados. Acho que já perceberam que o Ocidente não irá estabelecer uma zona de exclusão aérea. Vamos continuar a ver assassinatos em massa e a fazer muito pouco. E, depois, há milhões de refugiados... A União Europa tem sido incrível, mas o Governo britânico tem sido repugnante – é a melhor palavra que consigo usar – na sua relutância e incompetência burocrática em aceitar mais refugiados da Ucrânia.

E o que acha que as organizações de saúde, como a OMS, devem fazer para ajudar mais a Ucrânia?
Acho que estão a actuar bem. Mas ter milhões de mulheres, homens e crianças refugiadas vai ser muito difícil…

Precisamos de mais preparação?
Mais preparação e mais dinheiro. O mundo mudou. Nada voltará a ser exactamente o mesmo outra vez. Embora se diga que é improvável que a guerra se intensifique rapidamente, isso também é possível. Há ainda a possibilidade de uma guerra nuclear e todos sabemos que numa guerra as coisas podem facilmente ficar descontroladas. Basicamente, Putin está a lutar pela sua vida e pela vida do grupo à sua volta. Há muito com o qual deveremos estar preocupados.

Em relação à saúde, a preparação deve ser feita não apenas para a Ucrânia por si só, mas também por todos os refugiados…
Sim, há muito trabalho a ser feito.

Vai ser uma catástrofe ao nível da saúde?
Já é!

Mas espera ainda algo pior?
A situação ainda vai ficar pior. É impossível saber o que vai acontecer, mas sabemos que vai ser mau sobretudo para a Ucrânia e os ucranianos. Isso já é bastante certo. Aquilo que sei, por lá ter trabalhado durante 30 anos, é que os ucranianos vão continuar a lutar. Nem tenho dúvidas sobre isso!

É uma completa agonia para mim, mas é 100 vezes pior para os meus amigos lá. Penso que centenas de pessoas ainda vão morrer, talvez até milhares. Penso que será improvável que se torne numa guerra entre a NATO e a Rússia, mas é possível. Se for esse o caso, poderá haver uma guerra nuclear.

Conhece bem a Ucrânia, os ucranianos e a saúde no país. Trabalhou lá durante 30 anos e pro bono. Porque se sentiu atraído pela Ucrânia?
Há 30 anos, um ano depois da independência da Ucrânia [após o colapso da União Soviética], houve uma oportunidade para dar algumas palestras [na Ucrânia]. Havia um grande hospital de neurocirurgia e fui convidado a dar algumas lições lá.

Mas conhecia alguma coisa sobre a Ucrânia?
Sim, já tinha lido muito. Sabia mais do que a maioria das pessoas na Europa sobre a história da Rússia e da Ucrânia. Em 1969, fui para a Universidade de Oxford para estudar política, filosofia e económica, e fui ficando muito interessado na Rússia e na cultura russa. Terminei o curso e tive mesmo uma boa qualificação. Mas, depois, por algumas questões complicação que não vou falar agora, é que acabei por ir para a escola de medicina e, quase por acaso, tornei-me neurocirurgião [e em 1987 começou a praticar neurocirurgia no St. George's Hospital, em Londres, sendo que, neste momento, já está reformado].

Ia à Ucrânia com frequência?
Sim, comecei a ir lá com mais frequência: uma ou duas vezes por ano durante algumas semanas para tratar doentes e ensinar médicos. Houve altos e baixos, bem como muitas lutas políticas que envolviam os médicos. Foi um tempo de paz e fiz muitos amigos. Parei de ir lá por causa da pandemia, mas continuei a comunicar através de email.

Também fez lá cirurgias ao cérebro?
Sim, a minha última foi em Janeiro de 2020. Estive em Ivano-Frankivsk a ensinar estudantes de medicina. Já vi que Ivano-Frankivsk foi bombardeada na última noite [nas primeiras horas de sexta-feira]…

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PAULO CASTANHEIRA/Lua de Papel

Quando começou a ir à Ucrânia que condições encontrou?
No início, as condições eram absolutamente terríveis. Nem havia instrumentos adequados. Embora a Ucrânia permanecesse um país relativamente pobre, as condições foram melhorando muito ao longo dos anos. Nos anos mais recentes, os meus colegas já faziam lá cirurgias modernas.

Houve uma enorme mudança. Mas, embora a sociedade ucraniana mudasse, continuava a existir um problema com a corrupção e com os oligarcas. Mas é uma democracia, mais propriamente uma democracia ‘estranha’ porque elegeram um comediante da televisão. Mas agora ele é um líder de guerra. E acho que, em parte, por causa dele a União Europeia tem-se manifestado contra Putin.

E quais eram as principais dificuldades quando trabalhava lá?
As principais dificuldades eram mesmo os ciúmes profissionais e a política. Isso foi melhorando ao longo dos anos, mas continuou a existir um problema com os recursos nas instalações [médicas]. Havia aparelhos de exames ao cérebro e coisas do género, mas, por exemplo, num hospital para crianças em Lviv onde trabalhei nos últimos anos, esse aparelho de exames estava num outro edifício por baixo de umas escadas e sem elevador. Então, tínhamos de levar as crianças numa maca através de umas escadas muito estreitas para outro edifício. Se se quisesse fazer um exame urgente ao cérebro, havia dificuldades deste género.

Espera ainda voltar à Ucrânia?
Bom, já tenho 72 anos e fui diagnosticado com um cancro avançado. Já não sei se viverei muito mais tempo e as minhas capacidades médicas deverão ser irrelevantes para a situação actual na Ucrânia. Mas anseio voltar lá, porque o meu coração está lá e tenho amigos lá que adoro.

E há sempre a esperança que um dia a situação melhore…
Temos de ter esperança no melhor. Se não tivermos esperança no melhor, então vamos ceder e o pior acontecerá.

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