“Brexit”?

Era bom que May e Corbyn se salvassem. Porque um falhanço – um “Brexit” sem acordo e desordenado – poderia bem acabar por destruir a unidade do Reino Unido.

'Brexit’ means Brexit'!” Foi com estas palavras, secas e terminantes, que Theresa May, em 30 de Junho de 2016, se apresentou ao Parlamento, à Grã-Bretanha e ao Mundo no seu discurso de posse como primeira-ministra britânica, na sequência da surpreendente vitória do “Leave saída do referendo de 23 de Junho do mesmo ano. Lembrou-me as palavras de Joan Crawford no Johnny Guitar, ao dirigir-se ao Kid, um miúdo armado em homem: “That’s hard talk for a man who doesn’t carry guns!” (Cito de cor.) May, de facto, após os maus resultados eleitorais de 2017, em que os Tories perderam a maioria absoluta herdada de Cameron, prosseguiu o seu mandato já grandemente ferida na asa, muito mais vulnerável do que um ano antes, quando tomara posse.  

O artigo 50 do Tratado da União Europeia foi accionado em Março de 2017. A partir daí, iniciou-se a contagem decrescente para um “Brexit” que deveria consumar-se até 29 de Março de 2019. Os “hardbrexiters”, capitaneados, entre outros, pelo desmiolado Boris Johnson, esfregaram as mãos de contentes. A presidente do partido Tory era uma presa fácil: tudo o que não fosse um “hard Brexit” era de imediato rejeitado pelo Parlamento, a dura rota com que May (precipitadamente) se comprometera era de imediato exigida. À medida que as negociações com a UE prosseguiam, com inesperada e exasperante lentidão, tropeçando a cada passo em excruciantes problemas técnicos e políticos, os deputados exigiam-lhe, por vezes com bruteza, explicações exactas sobre o que demorava o processo. Durante dois anos, May foi assada em fogo lento no Parlamento britânico.

O Brexit, “hard”, “soft” ou “Brino” (Brexit In Name Only), revelou-se um problema sem solução nem prática nem teórica. May viu-se martirizada pela antiga e encarniçada facção “Brexiter”, e desajudada pelo Labour, cujo líder, compreensivelmente, se esforçava por dificultar o mais possível a vida da senhora May. De resto, Corbyn era um “Brexiter at heart”, ao contrário da grande maioria do seu partido: no referendo de 2016, tomara uma posição vacilante a favor do “Remain”; Corbyn, que detesta a Europa capitalista, levou a campanha a fazer de morto.

May tinha ainda de enfrentar as exigências pertinentes ou impertinentes da UE e, de regresso a casa, era ainda obrigada a explicar ao Parlamento (e aos Tories em particular) que as imposições da Europa eram mais do que arame farpado, eram muros de betão. Ou seja: sair da Europa não era propriamente o mesmo que sair da sala e bater com a porta. A amável mas intrépida rigidez de Michel Barnier, um mero funcionário da UE, correspondia às directivas de quem se julga o dono da Europa, Emmanuel Macron, o Presidente da França. Macron, que pelo vistos não se apercebe de que é a França o maior doente da Europa, impôs uma linha dura, punitiva, e Angela Merkel, também já ultrapassada pela História, crente, ainda, de que a Europa continuava a ser uma associação de Estados impulsionada e orientada pelo motor franco-alemão, como nos tempos de Delors, subscreveu a medicação receitada por Macron para lidar com a Grã-Bretanha: intransigência total.

Com esta descabida e desnecessária genuflexão, Merkel perdeu a oportunidade de marcar a diferença e legar para a posteridade um precedente de frutuosa colaboração anglo-germânica. A Inglaterra é o principal mercado das exportações alemãs. A economia britânica soma nove PIB’s dos nove Estados-membros mais pequenos. Com um “hard Brexit”, a Europa não diminui de 27 para 26, mas sim, economicamente, para 18 países. A saída da Inglaterra da UE, a verificar-se, desfere um rude golpe sobre a totalidade da UE, que desse modo ficará mais pobre e mais mal apetrechada para se posicionar como um player global. A Europa, e muito em particular a Alemanha, têm todo o interesse em salvaguardar uma qualquer ponte ou uma qualquer forma de presença da Grã-Bretanha na Europa. Merkel fez mal em subscrever a linha dura receitada por Macron.

Ao longo de mais de dois anos, a dilação do “Brexit”, previsto inicialmente para 29 de Março, passou para 31 de Outubro. Neste último ano, 2018-19, Theresa May foi por três vezes indecentemente humilhada no Parlamento, e no seu partido. Os seus três planos para o “Brexit” foram três vezes chumbados pelo Parlamento. E a pergunta que mais me tem perseguido é a de saber por que motivo May se expõe a sucessivas desautorizações no partido e a sucessivos chumbos no Parlamento. O que faz correr Theresa May? Quando a resiliência, indispensável num político, se converte em crassa teimosia, algo está profundamente errado. O que faz correr Teresa May? O que a faz correr entre o n.º 10 e Bruxelas e Westminster? May já ofereceu a sua demissão em troca da aprovação do seu 3.º plano para o “Brexit”. Poderia oferecer ainda mais: ser pregada na Cruz e expor-se à contemplação pública do seu suplício na London Tower!

Mas eis que ela, que julgáramos morta e destrunfada, saca ainda mais uma carta do bolso: Jeremy Corbyn, presidente do Labour. Corbyn está também, nas circunstâncias dele, frágil, vulnerável. O Labour é maioritariamente “remainer” – ele é um “brexiter” encapotado. O partido, ou a maior parte do partido, exige que ele assuma alto e bom som a causa dos “remainers”, o que ele tem evitado: a Europa é capitalista e ele é comunista. Depois há mais: Corbyn é anti-semita, tutela, encoraja e acaricia um pestilento e repugnante grupo anti-semita alojado no Labour. Está, politicamente, perante o seu próprio partido, duplamente vulnerável. Percebeu que, para consolidar a sua liderança, tinha de dar provas ou de que não era contra os judeus, ou de que não era contra a Europa. Subitamente, et pour cause, no início deste mês abriu-se ao diálogo com Teresa May sobre a Europa e o “Brexit”. Segundo a porta-voz da primeira-ministra, as “conversas” foram “construtivas” e “ambos os lados mostraram flexibilidade”. As negociações são para continuar. Nunca ambos tinham falado sobre o “Brexit”. Salvar-se-á ele? Salvar-se-á ela? Nenhum dos dois se salvará? Salvar-se-ão ambos?

Era bom que ambos se salvassem. Porque um falhanço – um “Brexit” sem acordo e desordenado – poderia bem acabar por destruir a unidade do Reino Unido. Reconhece, arrependido, Roger Cohen no New York Times: “Falhei ao não entender a que ponto a UE é parte da cola que mantém unido o Reino Unido.”

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