À terceira é de vez? O “Brexit” num clímax shakespeariano

Podemos assistir a dois desenvolvimentos irónicos na próxima semana, se Theresa May conseguir aprovar o acordo de saída do Reino Unido da UE, depois de fazer campanha pela permanência, e os brexiteers votarem para o inviabilizar.

1. Não foi por acaso que a Inglaterra teve um escritor e dramaturgo como William Shakespeare. A tragédia em cinco actos Hamlet, Príncipe da Dinamarca, usualmente conhecida apenas como Hamlet, foi escrita na transição do século XVI para o século XVII. É uma das grandes obras da literatura britânica e mundial. Ainda hoje capta a atenção do leitor, ou de quem assiste a uma das suas inúmeras representações teatrais, pelo poder do seu enredo e intemporalidade de certos actos e sentimentos do ser humano. O sofrimento, a raiva, a vingança, a traição, a corrupção e a imoralidade estão aí patentes.

Para além da literatura, a terra de William Shakespeare ficou conhecida, para os seus rivais e inimigos, de forma pejorativa, como a “Pérfida Albion”. A expressão, tipicamente francesa, surgiu no contexto das rivalidades franco-britânicas pelo domínio da Europa e competição colonial, tornando-se de uso comum no século XIX.

Para os detractores da Inglaterra — transformada em Reino Unido a partir dos actos de união com a Escócia (1707) e Irlanda (1800) —, esta era o arquétipo da perfídia e cinismo na política internacional. Traições, jogo dúplice, desrespeito de promessas e de alianças feitas com outros Estados, sempre em busca do seu interesse próprio, são, para os mais críticos, a imagem da Álbion. Hoje é a perfídia eurocéptica dos britânicos que Michel Barnier, o negociador (francês, claro) da União Europeia, pretende derrotar.

2. Como num bom drama, as negociações do acordo de saída britânica da União Europeia já tiveram inúmeras peripécias que surpreenderam o espectador mais exigente em enredos políticos originais e baralharam as previsões dos analistas políticos mais experientes. Voltas e reviravoltas, traições e vinganças, promessas de fidelidade e de oposição, alianças e pactos com o diabo, de tudo já se viu um pouco.

Uma particular personagem merece destaque neste enredo com tonalidades de um drama shakespeariano: Theresa May. Já foi dada como acabada politicamente mais vezes do que qualquer primeiro-ministro britânico, ou do que qualquer outro político da União Europeia no último século. Até agora, apesar de muito fragilizada, o que se tornou no seu estado político “normal”, continua a chefiar o governo.

Quanto ao acordo de saída que negociou com a União Europeia a 14 de Novembro de 2018, também já foi por duas vezes dado como clinicamente (leia-se politicamente) “morto” — a primeira vez a 15 de Janeiro e a segunda vez a 12 de Março —, após as votações esmagadoras contra no Parlamento Britânico. Esse foi o diagnóstico da imprensa, de vários políticos britânicos, incluindo do seu próprio partido, e de Ministros de Negócios Estrangeiros de outros Estados da União Europeia. Todavia, o acordo vai regressar, pela terceira vez, das trevas ao mundo dos vivos. Irá ser objecto de nova votação no Parlamento Britânico antes da cimeira da União Europeia de 21 e 22 de Março. 

3. Todos os dramas têm personagens centrais e secundários. No caso do “Brexit” o jurista e advogado Geoffrey Cox (barrister e Queen's Counsel, na designação legal britânica), é o actual conselheiro legal principal (Attorney-General) do Governo Britânico. Comparado com Theresa May, Jeremy Corbyn, Boris Johnson, Michael Gove, Jacob Rees-Mogg, ou Nigel Farage, parece um personagem secundário. Tão secundário que muitos britânicos — e menos ainda outros europeus —, alguma vez ouviram falar dele. 

Todavia, a realidade é outra. Ainda que actuando fora do olhar da opinião pública, Geoffrey Cox é um personagem maior. Theresa May depositou nele grandes esperanças, quer para negociar com a União Europeia, quer para usar as suas opiniões legais para convencer a parte mais eurocéptica do próprio Partido Conservador e dos seus aliados da Irlanda do Norte — o Partido Unionista Democrático (DUP).

Além do mais, Geoffrey Cox era um dos pouco juristas de topo que podia escolher para o cargo com uma visão política favorável à saída da União Europeia.

Numa negociação de última hora com Jean-Claude Juncker e a União Europeia, feita na véspera da segunda votação do seu acordo no Parlamento Britânico a 12 de Março, Theresa May conseguiu uma declaração adicional sobre a Irlanda do Norte. Para ela, teria sido afastada a possibilidade de a Irlanda do Norte — no âmbito da futura relação com a União Europeia — permanecer mais ligada a esta do que o resto do território britânico, num permanente mecanismo de backstop que garantiria a fronteira aberta.

Mas uma frase final “assassina” no parecer legal de Geoffrey Cox deu argumentos aos críticos conservadores e unionistas para continuarem a não aprovar o acordo. Afirmava que “o risco legal continua inalterado.

Apressadamente, muitos elogiaram logo o conselheiro legal do Governo Britânico por ter escolhido “a lei em vez da política”. Mas este terá depois reformulado — ou clarificado — o seu parecer legal. Afinal, o Reino Unido poderá denunciar unilateralmente a cláusula de backstop na Irlanda do Norte ao abrigo do artigo 62º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (cláusula rebus sic stantibus/ mudança fundamental das circunstâncias. Também no Direito a criatividade pode ser uma virtude… política

4. Na famosa frase de Hamlet no Acto III, Cena I, este debatia-se com um dilema profundo: To be, or not to be, that is the question/ “Ser ou não ser, é isso a questão”. E interrogava-se a seguir nas suas deambulações filosóficas: “Será mais nobre deixar que o espírito suporte/ Os golpes e as setas da fortuna ultrajante / Ou erguer as armas contra um mar de angústias” (ver William Shakespeare, Hamlet, trad. de Sophia de Mello Breyner Andresen, Assírio & Alvim, 2015).

Para o Parlamento Britânico a questão é bem menos filosófica: aprovar ou não aprovar, o acordo de Theresa May; e sair ou não sair, da União Europeia. Qualquer resposta tem importantíssimas consequências na vida dos cidadãos. Na próxima semana vamos assistir a dois desenvolvimentos altamente irónicos: (i) uma nova votação do Acordo de 14 de Novembro dado prematuramente como “morto”; (ii) um pedido formal do Governo Britânico à União Europeia de um alargamento do prazo de saída — que actualmente termina a 29 de Março de 2019 — para 30 de Junho, se o Acordo de Novembro for aprovado.

No primeiro caso, será uma ironia ser Theresa May (que fez campanha pela permanência na União Europeia no referendo de 2016) a conseguir a aprovação de um acordo de saída da União Europeia. Ainda por cima depois das estrondosas derrotas parlamentares que sofreu.

No segundo caso, será uma ironia ainda maior se forem os eurocépticos do Partido Conservador — que sempre quiseram sair da União Europeia — a terem um papel decisivo no fracasso do “Brexit”. Provavelmente, o Acordo de 14 de Novembro negociado por Theresa May será a melhor (ou única) hipótese das suas vidas para concretizarem tal objectivo. Se o inviabilizarem, arriscam-se a prolongar por bastante mais tempo a permanência na União Europeia.

Mas isso levará, entre outras coisas, à participação nas eleições para o Parlamento Europeu de Maio e a uma continuidade da contribuição britânica para o orçamento europeu.  Abrem ainda a porta a uma futura revogação da intenção de saída, seja pela via de uma nova eleição parlamentar britânica, seja de um segundo referendo. 

Quanto à União Europeia, se recusar um alargamento do prazo, será um favor que os eurocépticos britânicos muito agradecerão, pois o automatismo da engrenagem jurídica continua a apontar para uma saída a 29 de Março. Absurdo? Talvez um novo Shakespeare possa imortalizar estes episódios num drama em três actos. Não necessita de muita imaginação, basta olhar minuciosamente para o que os políticos têm feito.

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