Quebrar a lógica do braço-de-ferro no "Brexit"

Muitos governos europeus podem não ver vantagens em dar aos eleitores uma imagem de intransigência, quando se aproximam eleições europeias em que muita coisa está em causa para o futuro da Europa.

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1. A estratégia negocial da União Europeia para o "Brexit" assentou em duas ideias fundamentais: não facilitar a vida ao Reino Unido, para fazer a demonstração junto dos que pudessem cair em tentação idêntica de que sair é muito complicado, sobretudo para quem sai; manter os restantes 27 unidos em torno do mandato negocial para mostrar ao outro lado da mesa de que lado estava a força.

Pode entender-se esta estratégia e os seus fundamentos. Só mesmo os fanáticos do "Brexit" ou os incautos poderiam ter imaginado que o Reino Unido tinha “argumentos” suficientes para fazer vergar Bruxelas. Mas houve quem pensasse assim, partindo do princípio de que seria fácil dividir para reinar e ameaçar a Europa com um “Brexit” demasiado hard, tendo em conta o peso do país na União.

Os tradicionais aliados do Reino Unido - uma maioria de países de Leste e os países ocidentais de vocação mais euro-atlântica - lá estariam para pressionar Bruxelas a não ser demasiado inflexível. O cálculo revelou-se errado, como aliás, quase todos os cálculos do Governo britânico. O "Brexit" acabou por dividir profundamente os partidos, o Parlamento e o próprio Governo, fortalecendo a mão dos negociadores europeus. 

2. Mas, à medida que a data de saída se aproxima e as consequências de ausência de acordo se tornam cada dia mais palpáveis, pode chegar a hora de Bruxelas, ou melhor, dos governos que lhe conferiram o mandato para negociar fazerem também algumas contas à vida.

Limitar-se a dizer que o acordo é inegociável pode ter os dias contados. Insistir em que estão à espera de que Theresa May lhes apresente o acordo aprovado em Westminster deixou de fazer qualquer sentido, a partir do momento em que ele foi rejeitado por uma diferença de 230 votos.

Os 27 não querem uma saída sem acordo, porque as consequências económicas e sociais seriam muito pesadas. Mas, mais do isso, muitos governos europeus podem não ver qualquer vantagem de dar de si próprios aos eleitores uma imagem de intransigência, quando se aproximam eleições europeias em que muita coisa está em causa para o futuro da Europa, e não pelas melhores razões. Seria dar argumentos aos movimentos nacionalistas antieuropeus que gostariam de fazer do “Brexit” um exemplo para mostrar até que ponto existe uma “ditadura” de Bruxelas que não admite aos seus povos o direito de escolher onde querem ou não querem estar.

Acresce que uma saída sem acordo não seria apenas imputada a Londres. O que aconselha os responsáveis europeus a considerar as alternativas possíveis - que vão desde o adiamento da data de saída até a uma renegociação parcial.

A estratégia de May foi levar as coisas internamente até o mais próximo possível do precipício para forçar a mão aos deputados. Em parte, falhou. Ontem foi ao Parlamento reconhecer isso mesmo.

A estratégia da União Europeia não pode ser a mesma. Alguma vez vai ser preciso quebrar a lógica perversa segundo a qual a minha força é a tua fraqueza ou vice-versa. Como muita gente tem dito, a saída do Reino Unido implica o enfraquecimento das duas partes, num mundo em que a Europa navega cada vez mais contra a corrente.

3. Um eventual adiamento que os 27 aceitariam facilmente tem, no entanto, uma pergunta indispensável apensa: adiar para quê. E, até agora, Westminster ainda não tem uma resposta – embora haja várias respostas possíveis.

Quando a própria May aceita que é preciso reabrir as negociações para alterar as condições do backstop, também quer dizer, ainda que não o diga ainda, que pode ser preciso mais tempo para renegociar um acordo que reúna os votos suficientes em Westminster.

Podem os deputados britânicos vir a entender-se sobre a justificação do adiamento? Não é ainda claro. Até porque parte significativa dos tories ainda prefere um não acordo a um acordo que não garanta o seu primeiro e único objectivo: cortar todas as amarras com a União Europeia.

Por isso, o chamado “compromisso de Malthouse” que inclui a reconfiguração do backstop mas também uma vaga hipótese de saída sem acordo devidamente “acordada”, que alguns radicais se apressaram a aceitar, provoca algumas desconfianças.

Pode ser um simples recuo táctico para evitar a todo o custo a hipótese de um novo referendo, que tem crescido nas últimas semanas, fruto do caos político reinante. Em contrapartida, muitos dos remainers, conservadores, trabalhistas e liberais-democratas, viam com bons olhos uma extensão suficientemente longa do Artigo 50 para permitir uma nova consulta popular devidamente precedida por um debate que nunca houve antes de 2016, quando o resultado do referendo só poderia ser “a favor” da União, dispensando ir ao fundo da questão existencial que estava em causa.

O problema é que a direcção do Labour ainda não está nessa fase (apesar da pressão cada vez maior das bases), como também ficou ontem demonstrado no Parlamento britânico. Corbyn só quer um adiamento de três meses, não compatível com a ideia de nova consulta, mas apenas com a possibilidade de renegociar o acordo. Aquilo que voltou a defender é que a renegociação do acordo deveria manter o país na União Aduaneira, com consequências que voltou a não querer clarificar.

Quando May lhe perguntou se isso implicava – como implica – aceitar uma tarifa externa comum, a mesma política comercial e as mesmas regras para as ajudas de Estado, o líder trabalhista apenas respondeu que a União Aduaneira teria de “ser negociada” e serviria para garantir que os direitos dos trabalhadores. Demasiado vago. A sua emenda nesse sentido foi derrotada.

4. Mas partir de agora, será cada vez menos possível a Bruxelas continuar a tocar a mesma música. Porque se aproxima a data fatídica de 29 de Março. Porque uma saída sem acordo é um pesadelo. Porque não é do interesse europeu alienar um país que continua, como sempre foi, uma peça fundamental do mosaico político da Europa. A pressão também tornará mais difícil manter a ordem nas fileiras. Ou então, como lembrava ontem o Financial Times, os dois lados arriscam-se a uma remake do filme Thelma e Louise, quando ambas resolvem que o melhor é mesmo avançar para o precipício.

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