Caso IURD lança debate sobre retiradas "abusivas" de crianças

Dezenas de casos actuais estão a ser contestados por uma associação de mães. O PÚBLICO consultou alguns desses processos abertos em nome do superior interesse da criança. Hoje é Dia Mundial da Criança.

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Paulo Pimenta

As acusações de alegadas ilegalidades na forma como terão sido decididas adopções de crianças à guarda do Estado na década de 1990 abriram o caminho a mais denúncias relacionadas com processos recentes ou ainda em curso. São, na maioria, alegações lançadas por mães que viram os seus filhos serem-lhes retirados e entregues a pais, avós ou outros familiares, a instituições de acolhimento ou, já numa fase avançada do processo de promoção e protecção dos menores, encaminhados para uma futura adopção.

Criada este ano, a Associação e Movimento de Alerta à Retirada de Crianças e Adolescentes — AMARCA — responsabiliza a Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), através dos seus profissionais, por retiradas supostamente “abusivas” de crianças às mães. A associação é apoiada pelos advogados Garcia Pereira e Gameiro Fernandes.

Em paralelo, e na sequência da transmissão da série de reportagens da TVI sobre alegadas irregularidades nas adopções por parte de elementos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), nos anos 1990, um outro grupo, que viria a criar o Movimento Verdade, lançou a petição "Não Adopto Este Silêncio". A petição recolheu mais do que as quatro mil assinaturas necessárias para ser debatida no plenário da Assembleia. 

Em causa está a actuação dos técnicos que dão apoio aos tribunais e elaboram os relatórios sociais (decisivos para a sentença dos juízes) sobre as competências e condições das famílias em processos recentes de promoção e protecção ou de regulação dos poderes parentais.

O PÚBLICO consultou alguns desses processos que foram reportados pela associação à Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, que já requereu a audição da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal (a pedido do PS), do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José António Vieira da Silva, do provedor da SCML, Edmundo Martinho, e de um representante do Conselho Superior da Magistratura (estes três a pedido do PSD).

Para além de pretenderem analisar as denúncias sobre supostas irregularidades nas adopções por parte de elementos da IURD, nos anos 90, os deputados querem apurar o que pode ainda hoje estar a falhar nos processos de regulação do poder parental, de promoção e protecção de menores e de adopção, tendo em vista eventuais alterações à lei.

“Máximo rigor exigido”

“O legislador devia ter em mente que estamos a falar de pessoas frágeis do ponto de vista económico, do ponto de vista cultural, social. O Estado, mais aqui do que noutros lados, tem que agir com cuidado e com a máxima exigência de rigor”, defende a advogada Paula Penha Gonçalves, sem ligações à AMARCA, mas que se dedica, com frequência, a casos de direito de família e da criança.

Além de uma rigorosa fiscalização a todas as instituições envolvidas na retirada e no acolhimento de crianças em perigo, Penha Gonçalves defende a garantia de acesso a um advogado especializado para acompanhar as famílias e defender o superior interesse da criança. Isso poderia ajudar pais, mães e filhos que passam por processos demorados nas comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ) ou nos tribunais.

São vários os casos apresentados pela AMARCA em que a violência doméstica ou a violenta discórdia entre mãe e pai (ou outros familiares) sobre quem deve ficar com a criança propiciam situações conflituosas que se arrastam nos tribunais. Um dos processos apresentados aos deputados pela associação foi o de uma avó materna que luta pela guarda definitiva do neto desde que este ficou órfão em 2014 da mãe, assassinada pelo marido — entretanto preso. Os avós maternos continuam à espera da decisão da guarda definitiva da criança num contexto de intermináveis disputas com a família do pai da criança condenado pelo homicídio da ex-mulher.

Atrasos verificados nas respostas da Segurança Social ou na resolução de pequenos impasses por entraves administrativos também podem não ajudar ao bem-estar da criança, como no caso de um pai que tinha a guarda da filha, mas tentava que esta não quebrasse os laços afectivos com a mãe (que lutava igualmente pela guarda da criança). Em causa estavam os encontros regulares, decididos pelo tribunal, entre mãe e filha. A realização dos encontros era da responsabilidade da Segurança Social, mas durante cinco meses esses encontros nunca aconteceram. Apesar da visível preocupação do pai, que enviou várias cartas a tentar desbloquear a situação, não houve respostas.

Nos processos consultados pelo PÚBLICO, também se encontram suspeitas de incumprimento das mães ou inflexibilidade dos pais, raptos, conflitos, filhos entregues a pais que já foram condenados por violência doméstica, mas também denúncias (que ficam muitas vezes por provar) de mães que acusam pais de violência sobre elas ou de abusarem dos filhos – em contexto de litígio pela guarda dos filhos. Estes casos representam uma pequena minoria.

Diferentes versões

Os processos judiciais podem não espelhar todos os lados da verdade. “Os relatórios muitas vezes são feitos expondo aquilo que se quer expor. E isso pode induzir em erro o tribunal. Falam, por exemplo, da negligência [da mãe ou do pai], mas falta a outra parte que, muitas vezes, não aparece e que, para se tomar a melhor decisão para a criança, tem que aparecer”, afirma Paula Penha Gonçalves. “As mulheres são ouvidas mas depois o que o relatório traduz não é contradito”, diz a advogada. O relatório social aponta um ou outro problema que a mãe possa ter “mas se calhar esta mãe também tem coisas boas que se podem estimular para dali fazer uma família melhor”.

São as coisas boas que tem que Beatriz pretende demonstrar agora que tenta recuperar o filho. No ano passado, viajou de Cabo Verde para Portugal ao abrigo dos acordos com países lusófonos de África na área da saúde, para tratar o filho hospitalizado em Lisboa com uma doença grave.

Do hospital onde passou seis meses ao lado de Ricardo partiu a sinalização da criança por parte de uma assistente social, sem que tivesse sido dada a possibilidade de Beatriz se defender, alega a própria. A Segurança Social alegou que Beatriz não tinha competências parentais. O seu processo é outro dos que são acompanhados pela AMARCA.

A presidente da CPCJ de Lisboa Centro, Sofia Silveira, que acompanhou o caso, diz que começou por tentar prestar apoio à mãe e, de seguida, à tia de Beatriz. Mas as fracas condições e apoios em Portugal, o comportamento de Ricardo e a postura de Beatriz e da tia não favoreceram essas respostas. Ricardo foi para uma instituição de acolhimento.

Beatriz diz que não foi informada de todo o contexto e que apenas foi aconselhada a dar o seu consentimento para uma intervenção da CPCJ, que lhe terá dado a garantia de que a colocação do filho num centro de acolhimento temporário (CAT) era isso mesmo: “Temporária." Ricardo vive nessa instituição desde que teve alta em Outubro.

Só mais tarde, Beatriz teve a ajuda de um advogado e conhecimento dos seus direitos. Nessa altura, leu o que tinham escrito sobre ela: não era capaz de dar a medicação ao filho e este mostrava-se agitado na sua presença, como alegou a CPCJ que acompanhou o processo.

Advogados especializados

A AMARCA fala de “irregularidades que estarão a resultar em decisões indevidas e injustas”. “As comissões de protecção vêem como uma verdade absoluta relatórios caluniosos que recebem das assistentes sociais de escolas ou hospitais. Não verificam”, acusa Rita Cássia, a representante das mães estrangeiras acompanhadas pela AMARCA. “Tem que haver uma instituição que avalie os procedimentos das assistentes sociais e das CPCJ.”

A antropóloga não esconde a sua preocupação com a situação. Diz que são instaurados processos de promoção e protecção que podem conduzir à retirada de crianças se as mães estiverem fragilizadas, numa situação de carência económica ou sem suporte familiar, não conhecerem os seus direitos nem lhes for prestada informação.

“A lei agora obriga à nomeação de um advogado, quando o juiz entende provável a aplicação de uma medida de retirada”, informa a advogada Paula Penha Gonçalves. Porém, tem dúvidas de que isso tenha muita eficácia. Defende, por isso, a criação de uma bolsa de advogados especializados no acompanhamento do direito das crianças.

“Devia criar-se essa especialidade e ter advogados nos tribunais para as famílias e pais sem meios, e para as próprias crianças. Uma coisa é nomear um advogado, em cima do julgamento, para defender uma criança. Outra é ter um advogado que conhece esta área do direito das crianças e sabe o que está a fazer”, salienta.

“Tudo isto era importante” porque, como diz, não existem dúvidas de que “há irregularidades”. “Há aqui como há noutros lados, mas aqui estamos a lidar com crianças e com aquilo que nos é mais precioso na vida que são os nossos filhos. As coisas assumem, portanto, uma proporção diferente.”

Beatriz e Ricardo são nomes fictícios

Notícia rectificada no dia 3 de Junho de 2018: a petição "Não Adopto Este Silêncio" não foi iniciativa da AMARCA mas sim do Movimento da Verdade

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