Nem mais 4,2 milhões apagam a contestação

António Costa anunciou novo reforço na dotação dos concursos de apoio às artes que permitiu repescar mais 43 estruturas, mas o sector vai continuar a protestar já esta sexta-feira. E a oposição também.

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António Costa defendeu que a contestação subiu de tom porque o Governo se explicou mal e as pessoas o compreenderam mal JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Em apenas 17 dias, o Governo anunciou três reforços orçamentais que alargaram de 15 para 19,2 milhões de euros uma dotação dos concursos de apoio às artes que há menos de um mês, no Parlamento, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, dizia ser inultrapassável porque o país virou "a página da austeridade mas não a da dificuldade" e o céu, lembrava então, "não é o limite". Esta quinta-feira, depois de interpelado por sucessivas cartas abertas e pré-avisos de protestos simultâneos em seis cidades do país, e pressionado à esquerda e à direita pelas declarações de três líderes partidários, o próprio primeiro-ministro vinha estabelecer, numa nota colocada às 7h no Portal do Governo, que o limite serão estes 2,2 milhões de euros adicionais que elevam a nova dotação dos concursos da DGArtes ligeiramente acima dos valores de 2009, patamar que tem sido reivindicado pelo sector como mínimo exigível.

Mas se este reforço trouxe um alívio relativo, ao permitir a repescagem de 43 das 64 estruturas que os júris dos vários concursos consideraram elegíveis, mas que dados os limites do financiamento disponível tinham ficado de fora, a intervenção pessoal do primeiro-ministro no processo não foi o suficiente para pôr um ponto final no crescendo de contestação que foi ganhando tracção ao longo das últimas semanas – e que só terá tido paralelo nos anos de austeridade, quando o Governo de Pedro Passos Coelho aplicou um corte cego de 40% ao financiamento das estruturas apoiadas pelo Estado em regime bienal ou quadrienal. Os protestos marcados para a tarde desta sexta-feira não foram desconvocados; horas antes, o ministro da Cultura estará, a pedido do CDS-PP, no debate de actualidade do Parlamento, e ali voltará de novo na terça para ser ouvido na Comissão de Cultura, juntamente com a directora-geral das Artes, Paula Varanda, por requerimento do PCP e do Bloco de Esquerda.

De resto, o controverso modelo de apoio às artes em que o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, se empenhou pessoalmente, e que várias associações representativas do sector querem ver radicalmente reformulado, vai continuar em vigor, pelo menos para já, reiterou o primeiro-ministro no debate quinzenal desta quinta-feira, onde o tema se agigantou. Retomando os argumentos da nota que publicara de manhã, António Costa disse aos deputados que é importante permitir que os concursos prossigam o seu curso e as verbas agora reforçadas cheguem às estruturas, sob pena de o sector cultural ficar "paralisado”. Depois, prometeu, será altura de, “serenamente", "avaliar um modelo que é novo, retirar as ilações, confirmando-o ou revendo-o, se for preciso".

Ao longo do debate, a oposição quis escrutinar a exiguidade das dotações e os reforços “minúsculos” entretanto anunciados, o modelo do concurso e a reacção da tutela. António Costa assumiu que a contestação terá subido de tom "muito provavelmente" porque o Governo se explicou mal e as pessoas "o compreenderam mal” e voltou aos números várias vezes para reiterar que mesmo os valores iniciais alocados a este concurso já eram "41% superiores [àqueles] que [o Governo de coligação PSD/CDS-PP] pôs a concurso há quatro anos”.

O primeiro-ministro foi convidado por Catarina Martins a assumir “um compromisso claro já para as verbas do Orçamento do Estado de 2019”, mas não aceitou o repto. E também não respondeu positivamente ao pedido do PCP e do PEV no sentido da reposição dos valores atribuídos ao apoio às artes em 2009: 25 milhões de euros, se actualizados de acordo com a inflação.

Do outro lado do hemiciclo, também o PSD quis alinhar-se ao lado dos agentes culturais. “Criticaram, reagiram, bateram o pé, e o Governo assustou-se”, felicitou Fernando Negrão, aproveitando a deixa para beliscar uma equipa que Costa sentira necessidade de segurar, reafirmando a sua confiança em Castro Mendes e Miguel Honrado, na carta divulgada horas antes: “Fisicamente está perto de si, mas politicamente desconhecemos o seu paradeiro. Não estava na altura de termos um ministro da Cultura a sério em Portugal?”. 

Dores de cabeça

A distribuição destes 2,2 milhões de euros adicionais por apenas 43 das 64 candidaturas que o júri considerou elegíveis pode trazer novas dores de cabeça ao Governo. Ao final da tarde, uma lista oficial a que o PÚBLICO teve acesso identificava as estruturas que o reforço permitiu tirar do limbo – e que inclui o Teatro Experimental de Cascais, o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, o CENDREV, o C.E.M, a Circolando, o Chapitô, a Banda Nova Sinfónica Portuguesa, o Sond'Art Electric Ensemble, a Orquestra XXI ou os Encontros de Fotografia de Coimbra –, evidenciando, por omissão, outras que também tiveram a pontuação mínima requerida (pelo menos 60% em todos os critérios de avaliação) mas continuam de fora. São os casos, por exemplo, da Bienal de Arte de Cerveira, da Orquestra Clássica do Centro ou da companhia de teatro Primeiros Sintomas.

De resto, e por terem sido considerados não elegíveis, continuam excluídos, salvo reversão da decisão do júri na fase (actualmente em curso) da audiência de interessados, casos tão paradigmáticos para o cânone do teatro português contemporâneo como a Casa Conveniente, de Mónica Calle, ou da Cão Solteiro, assim como o Teatro Experimental do Porto, um exemplo de reconversão de uma companhia histórica.

A clarificação feita por António Costa na sua carta poderá, de resto, ser interpretada como contrária às declarações feitas pelo ministro da Cultura à RTP na segunda-feira à noite, quando garantiu que o Estado "não deixará cair estruturas que, quer pela sua história, pelo seu passado, quer pela actividade que têm hoje e pela renovação que têm sabido fazer, merecem apoio". "Não compete ao Governo discutir as decisões do júri" ou "ter qualquer tipo de intervenção", sublinhou o primeiro-ministro, avisando que "não há apoios vitalícios" e afastando o cenário de uma subsidiação directa à margem dos resultados do concurso. "Se houve violação das regras do concurso ou erros na apreciação das candidaturas, os interessados podem e devem reclamar, desde logo na fase de audiência, que quanto ao teatro ainda está a decorrer", recomendou, confirmando as indicações já avançadas por Miguel Honrado na sua conferência de imprensa de terça-feira.

Mas não serão apenas as estruturas liminarmente excluídas dos apoios a recorrer da decisão dos júris dos vários concursos do Programa de Apoio Sustentado para o quadriénio 2018-2021. Algumas das companhias de teatro com historial de financiamento mais substancial, como a Companhia de Teatro de Braga ou O Bando, reclamam dos cortes pesados com que se vêem agora confrontadas, mesmo que se mantenham no pelotão das mais apoiadas. E até a Companhia de Teatro de Almada, que está em primeiro lugar da lista, com um apoio anual de 289 mil euros, vai recorrer da decisão, por considerar que a redução de 110 mil euros/ano proposta pelo júri inviabiliza a realização do Festival de Almada.

É uma batalha que pode ser incómoda até dentro do PS: Inês de Medeiros, com quem o partido ganhou a Câmara de Almada à CDU, considera "preocupante" a redução de 25% na dotação da companhia que organiza o festival em parceria com a autarquia: "Num apoio quadrienal, 25% representa um ano inteiro! O Estado central, o Ministério da Cultura e a DGArtes não podem de maneira nenhuma reduzir com esta ligeireza o apoio que dão à companhia que tem a seu cargo o maior festival de teatro do país, não podem demitir-se assim do evento", disse ao PÚBLICO, considerando "absolutamente necessário" que a situação seja revista.

E ainda que a maioria das despesas da contestação esteja a ser feita pelo sector e pelos partidos à sua esquerda, Inês de Medeiros já não é a única voz entre os socialistas a querer participar na discussão. Esta quinta-feira também a Secção de Cultura da Federação da Área Urbana de Lisboa do PS veio dizer que tem seguido "com a maior preocupação todo o processo", admitindo "falhas e lacunas" no novo modelo de apoio às artes, e subscrevendo a necessidade de reinscrever na agenda política "a meta mínima do 1% do Orçamento de Estado" para uma área que "sofre, de facto, de um subfinanciamento crónico".

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