Festival de Almada pode não se realizar este ano “para não degradar uma marca”

Perante o corte de 110 mil euros por ano proposto pelo júri dos concursos da DGArtes, a Companhia de Teatro de Almada diz que está em causa a 35.ª edição do mais importante festival de teatro português, que deveria decorrer entre 4 e 18 de Julho.

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RAQUEL ESPERANÇA

Confrontada no final da semana passada com a proposta de decisão do júri para a área do teatro dos concursos de apoio às artes, a Companhia de Teatro de Almada (CTA) preferiu esperar alguns dias e pedir à DGArtes acesso a documentação adicional antes de equacionar a situação sem paralelo no seu historial, “anos da troika incluídos”, que esta quarta-feira admitiu ao PÚBLICO: mesmo sendo a mais financiada das estruturas apoiadas pelo Estado no âmbito do Programa de Apoio Sustentado para o quadriénio 2018-2021, o corte de 110 mil euros/ano com que agora se depara, e que a deixa com uma verba anual de 289 mil euros, “põe em causa a realização da próxima edição do Festival de Almada”, diz o director da companhia, Rodrigo Francisco.

A vaga de contestação aos resultados dos concursos que decorrem do novo modelo de apoio às artes em vigor desde o ano passado não para de aumentar e ganhou especial fôlego com o anúncio das propostas de decisão da última quinta-feira, relativas à área do teatro. Apesar dos sucessivos reforços orçamentais que vêm sendo anunciados nas últimas semanas como medidas paliativas para socorrer as inúmeras estruturas que ficaram excluídas dos apoios, algumas com um percurso de várias décadas, até as companhias mais bem posicionadas nos concursos, como os Artistas Unidos, O Bando, a Mala Voadora e o Teatro Praga, subscreveram esta terça-feira uma carta aberta ao primeiro-ministro em que argumentam que “o sistema que este Governo impôs na cultura falhou por completo e de forma transversal, fragilizando ainda mais o sector artístico” e reclamam novo reforço “que evite a destruição de estruturas […] não apoiadas ou mesmo excluídas sob critérios que urge rever”. Outras, como a Companhia de Teatro de Braga – que surge em quinto lugar na nova pirâmide de apoios da DGArtes mas receberá menos 400 mil euros nestes quatro anos do que o montante a que se candidatou –, já vieram pedir a demissão do secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado: em conferência de imprensa, o director da companhia, Rui Madeira, acusou o Governo de querer “acabar com as companhias” ou transformá-las em “projectos pontuais”, cita a Agência Lusa.

Ponderadas as consequências que o corte de 110 mil euros poderá ter sobre uma temporada em que já teve em cena uma produção (Nathan, o Sábio, com encenação de Rodrigo Francisco) e se prepara para estrear outra (A Morte de um Caixeiro-Viajante, com encenação de Carlos Pimenta), também a CTA decidiu vir publicamente anunciar que só uma correcção dos resultados do concurso poderá viabilizar a 35.ª edição do festival, que deveria decorrer de 4 a 18 de Julho. “Toda a nossa actividade para este ano está apresentada e contratada – e há 700 pessoas que compraram um passe geral para acompanhar a temporada e com quem não pretendemos quebrar a nossa relação. A redução no financiamento teria de inevitavelmente de incidir sobre o festival, mas é difícil encaixar um corte de 110 mil euros tão em cima da hora, pelo que é a própria realização do festival que está em causa. Não podemos correr o risco de apresentar uma programação que não cumpra os níveis mínimos de qualidade – o Festival de Almada é uma marca que não podemos deixar degradar de forma nenhuma”, argumenta Rodrigo Francisco.

"Tudo mal desde o início"

Fundado em 1984 por Joaquim Benite, e consensualmente apontado como o mais importante festival de teatro português, o Festival de Almada recebeu ao longo das suas 34 edições referências da criação teatral europeia como os históricos Peter Brook, Berliner Ensemble e Piccolo Teatro, ou os mais recentemente consagrados Thomas Ostermeier e Katie Mitchell. A apenas três meses da data em que deveria iniciar-se, o corte orçamental que surpreendeu a companhia não tem como não atingir a próxima edição, a não ser que, na fase de audiência de interessados que agora decorre, ou através de novo reforço orçamental, aliás já admitido por Miguel Honrado na sua conferência de imprensa de terça-feira, seja possível inverter este cenário, frisa Rodrigo Francisco. 

A CTA prepara-se para contestar a decisão do júri (que de resto não faz qualquer reparo à candidatura, segundo a acta consultada pelo PÚBLICO), questionando as razões de tão substancial redução no financiamento e argumentando que o montante que lhe foi atribuído é manifestamente insuficiente para garantir 27 produções, quatro edições do festival e quatro temporadas de programação do Teatro Municipal Joaquim Benite. Fá-lo-á, diz Rodrigo Francisco, na esperança “de que haja sensibilidade política para corrigir um concurso em que tudo esteve mal desde o início” – e recusando-se a acreditar que seja “um Governo socialista a deixar cair o Festival de Almada”. Politicamente, o timing seria especialmente ingrato: o festival é o emblema cultural de uma cidade que desde as últimas autárquicas passou a ser presidida por Inês de Medeiros, uma figura do PS com fortes ligações ao meio.

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