Joaquim Benite: “O teatro é sempre político”

Joaquim Benite criou há 20 anos uma festa em Almada que acabaria por se transformar no primeiro festival internacional de teatro do país. Para este encenador, que aprendeu a ler nas páginas do República e que chegou a sonhar ser escritor mas nunca teve jeito, o festival atingiu a maturidade. “Ou cresce, ou desaparece. E eu recuso-me a ficar para assistir à queda.”

A Festa de Teatro de Almada começou em 1984, num palco improvisado ao ar livre, no Beco dos Tanoeiros, na zona velha da cidade. Os actores – na sua maioria de grupos amadores do concelho – instalaram-se nas casas dos moradores e fizeram de salas e quartos modestos os seus camarins. Na rua, a plateia dava para pouco mais de cem pessoas. “Só os primeiros a chegar tinham lugar sentados”, lembra Joaquim Benite, o encenador que agora comemora 20 anos como director daquele que viria a ser o Festival Internacional de Teatro de Almada, o único do género no país. “Era muito precário. Foi tudo feito com cem contos e boa-vontade.”

 

Sempre de 4 a 18 de Julho – as datas fixas tornavam possível o aproveitamento dos cartazes de uma edição para a outra –, o festival foi ganhando terreno, beneficiando do público que o Grupo de Campolide (futura Companhia de Teatro de Almada) começara a formar em 1978, ano em que trocou o Teatro da Trindade, em Lisboa, pela emblemática Academia Almadense.

Joaquim Benite assistiu na primeira fila às transformações que Almada sofreria nos anos 1970 e seguintes. “Na altura em que mudámos para Almada, a cidade era um autêntico estaleiro, com grandes fábricas e muitos operários. Hoje é um dormitório às portas de Lisboa.”

Quando o Grupo de Campolide se instalou na Almadense, Benite estava entusiasmado com a possibilidade de fazer parte de um programa de descentralização cultural que nascera no calor do pós-revolução e que servia os seus ideais de esquerda, os mesmos que lhe tinham sido transmitidos pelo tio Aleixo Ribeiro, um “republicano absoluto e forte opositor ao regime”, e que se desenvolveram nos grupos de teatro do liceu, nas tertúlias do Monte Carlo e nas redacções do República ou do Diário de Lisboa.

“Há muitas coisas na minha infância de que guardo memória. Mesmo quando é dura, ela é o que fica, o tempo em que somos felizes”, diz Benite, que continua a ter muitas reservas em falar nos primeiros anos da sua vida por recear parecer “pretencioso”.

Jornalismo e política

Joaquim Benite nasceu em 1943, filho de uma relação ilegítima que podia ter saído de uma peça ou de um romance. Foi no palco que o pai, um empresário de teatro de origem “burguesa”, António Macedo e Brito, conheceu a mãe, que sonhava ser corista. Juntos tiveram cinco filhos e enfrentaram inúmeras dificuldades. A mãe morreu quando o encenador tinha seis anos e o pai pouco depois.

“Lembro-me de o meu pai me levar ao Parque Mayer e de me ensinar a ler nas páginas do República’.”

Depois de perder os pais, Joaquim Benite vai viver para casa de uns tios que mal conhece e onde continua a estar em contacto com o teatro, a música e os livros. É neste contexto que decide passar a usar o nome da mãe. “A família do meu pai já não tinha dinheiro, mas mantinha uma certa atitude. E eu quis afrontá-los, porque eles não gostavam da minha mãe.” Tinha 12 anos e passava a maior parte do tempo com o tio Aleixo, que o ensinou a gostar de livros e a passear por Lisboa.

“O meu tio era cego e pedia-me que lesse para ele. No princípio aborrecia-me, mas pouco a pouco fui percebendo que era ele que me fazia um favor e não o contrário”, reconhece Benite. É pela sua mão que entra no universo de Camilo Castelo Branco ou Balzac, dois escritores que ainda hoje admira, e que conhece as ruas da capital.

Com 12 anos, Joaquim Benite vê a sua primeira peça de teatro: “Chamava-se Daqui Fala o Morto, e eu fiquei profundamente afectado, porque acreditei naquilo tudo”, explica.

Depois vieram os grupos de teatro do liceu, as primeiras intervenções políticas e o jornalismo. Aos 15 anos colabora com o Diário Juvenil”. “Era uma coisa a brincar com a escrita. Um ano depois entrei para o Notícias da Amadora’, onde comecei por limpar zinco-gravuras com petróleo e passei a angariador de publicidade, experiência que ainda hoje me dá jeito no trabalho de divulgação da companhia e do festival.”

Daí para o “jornalismo a sério, politicamente envolvido e envolvente”, foi um passo. Primeiro o República, depois o Diário de Lisboa. Quando fala do ambiente e da “adrenalina” das redacções por onde passou, o rosto de Joaquim Benite – sempre mergulhado no fumo dos muitos cigarros que fuma, “compulsivamente” – ilumina-se. Há sempre histórias para contar, peripécias com repórteres experientes, episódios de censura e de orientação editorial.

“No República, por exemplo, não podíamos escrever nomes de santos”, recorda. “Era um jornal profundamente anticlerical. E isso dava lugar a situações caricatas. Os santos populares eram as festas de António, Pedro e João. O cemitério do Alto de São João era o cemitério ocidental de Lisboa. E tudo passava.” Na altura, defende, as ideologias dos jornais eram mais declaradas e o mercado menos concentracionista. “As publicações pertenciam a famílias, não a grupos empresariais. E essas famílias eram de esquerda ou de direita. Se aceitávamos trabalhar num jornal, aceitávamos o seu posicionamento político.”

Benite acumulava as funções de redactor ou repórter com a de crítico de teatro desde que Artur Inês, o director do República ex-responsável por um jornal anarco-sindicalista, A Batalha – se convencera de que o seu jovem jornalista, filho de Macedo e Brito, “havia de perceber do assunto”.

“E lá fui eu ver um espectáculo da Laura Alves de que não gostei, mas sobre o qual não cheguei a publicar nada porque, segundo o Artur Inês, no República não se dizia mal da senhora.”

 

Um homem “evidentemente de esquerda”

Joaquim Benite sempre se conheceu como um homem “evidentemente de esquerda”. Apesar da proximidade ao Partido Comunista – o que fazia do trabalho numa cidade proletária como Almada uma experiência a não perder –, o encenador nunca quis pertencer ao aparelho. A única experiência que teve como “político instalado”– foi deputado da Assembleia Municipal de Sintra – durou dois meses.

“A política de aparelho exige disciplina. Nos jornais, eu estava habituado a escrever oito páginas sobre um congresso político e ver a censura reduzi-las a duas. Mas na assembleia não estava disposto a pedir autorização ao partido para falar.”

A política que lhe interessa está perto das pessoas e ligada à vivência da cidade, no sentido grego do termo. “É uma política que exige liberdade e responsabilidade individuais. Sempre tive uma costela anarquista e, por isso, nunca pude criar raízes no aparelho de um partido.” Se lhe perguntamos o que é preciso para se ter “habilidade política”, Benite não hesita: “Estar disposto a prescindir de uma certa liberdade e ser capaz de dizer o que é necessário em vez do que é verdadeiro.”

A sua intervenção política sempre passou muito pelo teatro, actividade que foi desenvolvendo a par do jornalismo e que, mais tarde, havia de pôr acima de todas as outras.

“O teatro de que gosto – o que fazemos na companhia e mostramos no festival – é um teatro-acção que se envolve com as pessoas, que as leva a pensar no seu dia-a-dia e que lhes muda a vida, de alguma maneira. Assim como a política deve ser.”

Joaquim Benite encenou a sua primeira peça em 1970, no Grupo de Campolide. O texto de Agustin Cuzzani, O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer, fazia parte de um “teatro do pensamento” que viria a servir de alternativa às duas estéticas que vingavam na época: a do Teatro Nacional, institucionalizado, e a do comercial, revisteiro.

Rapidamente as apresentações do grupo – constantemente em digressão – se transformaram em concentrações políticas. “Sentíamos que o nosso teatro podia ser uma forma de resistência política e tínhamos um público fiel.”

Hoje, o teatro continua a ter um papel social importante, mas Benite diz que já não há peças com “projectos ideológicos e discursos metafóricos”. “Hoje, o teatro para intervir só tem de falar abertamente da realidade. Mesmo quando não parece, o teatro é sempre político.”

O seu teatro não é menos politizado hoje só porque deixou de ter a plateia ocupada em exclusivo por trabalhadores da Lisnave como tinha nos anos que se seguiram à revolução nem perdeu capacidade de intervenção porque saiu dos “celeiros e vãos de escada da década de 70”. A sua companhia não se institucionalizou só porque se prepara para ocupar um novo teatro, construído de raiz, “um sonho” de que o encenador nunca se esqueceu.

“Sempre quis levar às pessoas um teatro de bons textos, boas ideias. Um teatro capaz de tocar. Nestes 20 anos de festival – que considero um sucesso junto da crítica e, mais importante, da comunidade – fizemos isso muitas vezes.”

Por lá passaram encenadores como Peter Brook, Luca Ronconi, Luc Bondi, Bernard Sobel, Robert Lepage, Benno Besson e Thomas Ostermeier, companhias de referência como o Piccolo Teatro di Milano, a Schaubühne de Berlim ou o Teatro Lliure de Barcelona.

“Agora temos de ir mais longe. Precisamos de mais apoios do Estado. O festival não se pode repetir na fórmula. Ou cresce, ou desaparece. E eu recuso-me a ficar para assistir à queda.”

Para Benite, que diz nunca ter tido jeito para escrever nem para representar, a função do encenador continua a ser clarificar o texto. “Ele existe para o tornar visível, para o organizar em palco. Uma mise-en-scéne é muito parecida com uma mise-en-page.”

Aos 61 anos, Benite, que tem dificuldade em aceitar a morte e o envelhecimento, quer encenar Goldoni e Tchékhov e continua a escrever poesia, “cada vez menos”. “Essa será sempre a minha grande mágoa – não conseguir escrever. Tenho ideias, mas nunca passo da segunda página. Falta-me talento.”

 

Texto originalmente publicado na revista Pública em Julho de 2004

 
 
 

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