O regresso da política

A questão é a de tentar perceber se o primeiro-ministro não se deixa inebriar pela própria habilidade no jogo da política e acaba a deitar tudo a perder.

António Costa foi a Atenas para visitar um campo de refugiados e assinar um acordo com o seu homólogo grego, Alexis Tsipras, em que ambos se demarcam das políticas de austeridade com que a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) fez frente à crise das dívidas públicas. É evidente que nesta viagem Costa assumiu um gesto de solidariedade para com os refugiados e de compromisso político com Tsipras numa atitude claramente política de discordância frontal das orientações da UE.

Esta viagem oficial terá sido o mais relevante facto político relacionado com o Governo português num momento em que a turbulência em torno do primeiro-ministro teve vários focos. É certo que dois deles serviram para reforçar a imagem de autoridade de Costa, já que para fora passou que a demissão de João Soares foi forçada pela declaração do primeiro-ministro, bem como que este teve um silêncio solidário com o ministro da Defesa, que tratou de mostrar às Forças Armadas o que é tutela política. Quanto à demissão do secretário de Estado do Desporto, ela pode esconder um problema adiado, como acontece com a eventual omissão de factos pelo ministro das Finanças em relação ao Banif.

Já inexplicável pela falta de regras e de transparência é a relação de Costa com Diogo Machado. Isto, porque face ao Estado não há amigos do primeiro-ministro — há vínculos contratuais explícitos. A forma como Costa criou esta situação indicia mesmo um desfasamento cultural do primeiro-ministro em relação ao que são hoje as exigências da democracia que quase o coloca num remake insólito de um tempo em que a política se fazia com e para os amigos e em que campeava o tráfico de influência. Ora, isto mostra uma insólita ingenuidade política que não bate certo em quem tem tanta experiência e obrigação de saber o que faz.

Apesar das crises internas, o primeiro-ministro esteve em Atenas numa atitude de liderança política dos países do Sul que surge em termos públicos na sequência da concertação de uma estratégia europeia entre líderes socialistas e sociais-democratas como François Hollande, Sigmar Gabriel, Matteo Renzi e António Costa, com o objectivo de forçarem um novo equilíbrio de forças na UE, como foi noticiado pelo PÚBLICO. Este gesto de pura política feito no exterior de Portugal e tendo como destinatários parceiros europeussurge na meio do debate que Costa lançou sobre o Programa Nacional de Reformas , o documento estratégico central que altera o Portugal 2020.

Costa optou por privilegiar o debate político e estratégico, através de um documento aberto que será aprovado em Conselho de Ministros no dia 21 de Abril e que submeteu ao debate no Parlamento com os partidos que apoiam o Governo e os da oposição, em detrimento do Programa de Estabilidade. O que é interessante na atitude com que Costa tem conduzido este debate é o facto de também aqui o primeiro-ministro assumir a primazia da política sobre o que tem sido, nos últimos anos, o domínio da economia. Conclusão: até agora ainda ninguém assistiu às discussões que se tornavam recorrentes sobre as previsões do défice.

Com o regresso da política e com o ressuscitar do debate ideológico entre abordagens alternativas dos problemas sociais, em que procura enterrar a governação tecnocrata dos últimos anos a nível nacional e europeu tenta afirmar uma alternativa à austeridade neoliberal que as instituições representadas pela troika impuseram aos países do Sul da Europa, Costa está assim a inovar de facto a política portuguesa e mesmo a europeia. A questão que se coloca a Costa é a de que o risco do desafio que está a abraçar ser proporcional ao tamanho da queda e do estrago que faz, se o seu plano e os seus objectivos se gorarem. Para mais num momento em que as previsões de crescimento são desastrosas para toda a Europa.

Ninguém nega hoje que Costa é um político habilíssimo e que consegue negociar o aparentemente inegociável e conquistar acordos impossíveis. Agora, como o próprio muito bem sabe, para que tudo corra bem a Costa, é preciso que Portugal continue a cumprir as metas impostas pelos credores. Assim, não se questiona aqui o direito — que existe — de António Costa, como primeiro-ministro, procurar melhorar a situação de Portugal em relação às exigências internacionais e europeias que lhe são feitas, nem o seu dever ético e a sua obrigação política de ser solidário com dramas humanos como o dos refugiados. Assim como não se questiona o direito que tem de ensaiar alternativas políticas. Pelo contrário, tais atitudes e estratégias políticas são de elogiar. A questão é a de tentar perceber se o primeiro-ministro não se deixa inebriar pela própria habilidade no jogo da política e acaba a deitar tudo a perder.

 

 

 

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