Luta entre as duas esquerdas é a chave do governo em Espanha

É difícil e lento fazer alianças no novo quadro partidário. Outro factor determinante é a estratégia do Podemos para destruir o PSOE e ocupar o seu espaço político. Rajoy está à margem e aposta no fracasso de Sánchez. Pode haver eleições em Junho

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ovidade é a agreste “batalha” entre o PSOE e o Podemos pelo domínio da esquerda JAVIER SORIANO/AFP

Esta semana foi frenética em Espanha, com manobras cruzadas entre o PSOE, de Pedro Sánchez, o Podemos, de Pablo Iglesias, e o partido Cidadãos, de Albert Rivera, sobre as alianças para formar uma maioria governamental. O Partido Popular (PP) e Mariano Rajoy estão numa posição marginal, apostando no fracasso de Sánchez em obter a investidura parlamentar nos primeiros dias de Março. A próxima semana continuará febril. Rajoy disse na sexta-feira a David Cameron que o cenário mais provável é o de eleições em Junho.

Não estão apenas em jogo as dificuldades criadas por um quadro partidário fragmentado, de que a política espanhola não tem experiência. A novidade é a agreste “batalha” entre o PSOE e o Podemos pelo domínio da esquerda. Se o PP está afastado da solução por ter perdido a maioria e não ter aliados, a aliança das “duas esquerdas” parece cada vez mais problemática.   

Após o desastre nas eleições de 20 de Dezembro, o PSOE parecia prestes a implodir, Sánchez era contestado pelos seus “barões” regionais e estava fora do “grande jogo”, que era conduzido por Rajoy e Iglesias. Hoje, é o líder socialista que ocupa o centro do tabuleiro, tentando negociar a viabilização de um governo à esquerda, com o Podemos e a Esquerda Unida (IU), e ao centro, com o Cidadãos. Excluiu qualquer acordo com o PP.

Eleições em Junho?
A viragem ocorreu no dia 2 de Fevereiro quando, após duas recusas de Rajoy, Felipe VI transmitiu a Sánchez o encargo de tentar obter uma maioria parlamentar. Foi um desaire para o líder do PP, que queria evitar uma derrota no Congresso dos Deputados mas desejava protelar ao máximo as datas, à espera de uma hipotética oportunidade. O Rei afirmou a sua independência e, com pesar do PP, recusou o “pântano”. É a primeira vez que o partido mais votado não assume o encargo de formar governo.

A primeira sessão da investidura parlamentar de Pedro Sánchez como presidente do Governo está marcada para 3 de Março, onde necessitará de maioria absoluta, e para dia 5, onde bastará a maioria relativa e as abstenções serão a chave da decisão. Começa então a contagem do prazo de 60 dias, ao fim dos quais, não havendo governo, o Rei dissolverá as Cortes, o que levaria a eleições no dia 26 de Junho. Este calendário tem uma escapatória: de facto, a data limite para obter a investidura é 2 de Maio, a véspera da dissolução.                                          

O atraso exaspera muitos espanhóis, dada a gravidade dos problemas do país. O politólogo Pablo Simón desdramatiza as semanas que já se perderam desde a abertura das Cortes: na Bélgica um governo demora em média 70 dias a formar e na Holanda 101. “É aconselhável dar tempo para negociação entre os partidos e compreender que num novo quadro fragmentado e plural os acordos levam o seu tempo.” E aponta outras duas razões: “A primeira é a falta de coesão dos partidos, essencialmente no bloco da esquerda, o que multiplica os vetos a um acordo.” Por fim: “A grande volatilidade eleitoral das últimas eleições gera suspeições suplementares. O acordo é mais fácil quando não há grandes mudanças no sistema partidário.” Com uma agravante no caso da esquerda, em que dois blocos disputam o mesmo eleitorado.

As iniciativas de Iglesias
O Podemos e o PP pensam ter a ganhar com eleições antecipadas: o primeiro para continuar a drenar eleitores do PSOE, o segundo para recuperar votos perdidos para o Cidadãos. Sánchez e Rivera seriam os que mais teriam a perder com eleições. É um elemento importante para perceber a dinâmica política. As sondagens revelam que os espanhóis não estão inclinados a regressar ao bipartidarismo, mas indicam que o Podemos, sobretudo se aliado à IU, pode ultrapassar os socialistas em votos e em mandatos. Mas são sondagens feitas antes das negociações encetadas por Sánchez.

Depois das eleições, a opinião dominante era de que a única alternativa de esquerda ao PP seria uma aliança entre PSOE e Podemos que, por não somar a maioria absoluta, necessitaria do apoio dos partidos regionais, incluindo os independentistas catalães. Mas os dois partidos têm opiniões diferentes sobre o modelo e a oportunidade da aliança.

Há manifestas resistências ao Podemos entre os “barões” do PSOE, o que levou Iglesias a fazer uma provocação a Sánchez: “Es que tu, Pedro, mandas poco en tu partido.” E a antecipar-se. No dia 22 de Janeiro propôs, numa conferência de imprensa e sem falar com Sánchez, um “governo de mudança”. O líder socialista foi informado pelo Rei. Que exigia Iglesias? Um executivo “bicéfalo”, em que seria vice-presidente e em que as pastas governamentais seriam divididas proporcionalmente ao número de votos de Dezembro. E a IU entraria na coligação.

Já em Fevereiro, radicalizou o projecto num documento que escandalizou o PSOE, por reivindicar para a sua esfera de poder o controlo dos serviços secretos (CNI), do Centro de Investigações Sociológicas (sondagens), da televisão pública, do combate à corrupção e ao crime organizado. Todos os “altos cargos” deveriam partilhar dos princípios do “governo de mudança”. Mantinha a exigência do referendo na Catalunha e queria um ministério da Plurinacionalidade, aparentemente destinado aos aliados catalães.

Perante o protesto de juízes e procuradores, que denunciaram a violação da separação dos poderes e reafirmaram a sua independência, Iglesias recuou na questão da magistratura.

António Hernando, chefe da delegação negocial do PSOE, disse a Iglesias: “Pablo, no sabes donde estás!” O encarregado de formar uma coligação é Sánchez. Vários analistas escreveram que Iglesias fazia ao PSOE uma proposta que este não podia aceitar, para lhe deixar o ónus da ruptura e de eleições antecipadas.

Para Iglesias, a palavra-chave é “sorpasso”, a ultrapassagem do PSOE, condição para ganhar a hegemonia da esquerda e ser a alternativa ao PP. Para Sánchez, é vital alargar a sua curta vantagem sobre o Podemos. É entre eles que, na sombra, se trava o principal duelo.

Os cálculos de Sánchez
Recusando a “grande coligação” com o PP, o PSOE tinha duas alternativas. A primeira, um governo tripartido com o Podemos e o Cidadãos, foi liminarmente afastada por estas duas forças, incompatíveis entre si. Uma coligação com o Podemos é arriscada e, de resto, só seria viável com os votos dos independentistas catalães, o que o PSOE não aceita. Resta um governo minoritário do PSOE, apoiado no Congresso pelo Podemos, pelo Cidadãos e por partidos regionais, já que o PP garante votar contra a investidura.

Sánchez abriu conversações com os centristas de Rivera. As negociações estão avançadas e um acordo parece possível, embora o Cidadãos não queira entrar no executivo e apenas dar apoio no Congresso. Mas há um problema: os dois partidos somam 143 deputados e, mesmo com o PNV, a Coligação Canária, o Compromis (Valência) e hipoteticamente a IU, não têm margem para passar no Congresso — excepto se o Podemos se abstiver.

Por isso, Sánchez desafia Iglesias a votar ao lado do PP e dar depois satisfações aos seus eleitores. Esta semana haverá a primeira reunião das esquerdas, entre delegações do PSOE, Podemos, Compromis e IU, por iniciativa desta, para discutir um programa de investidura, e não de governo, como queria Iglesias, que também exigia uma reunião prévia, tú a tú, com Sánchez.

Por sua vez, Rivera ainda não desistiu de pressionar o PP a abster-se para viabilizar Sánchez. Sublinha a politóloga Marta Romero que o PP pode pagar um preço alto ao votar contra Sánchez, “se os seus eleitores mais moderados tiverem a percepção de que ele sobrepõe os seus interesses partidários à sua responsabilidade institucional num momento político gravíssimo. (...) O mesmo pode acontecer com o Podemos se for percebido como uma formação sem vontade real de chegar a acordos e mais interessada pelo poder e em acabar com o PSOE do que em favorecer um governo de progresso.”

Por isso, Sánchez não dá a batalha por perdida e vai forçar a votação da investidura mesmo sem maioria garantida.

Que é feito do PP?
Na sexta-feira, o PP propôs uma coligação governamental ao PSOE e ao Cidadãos, com Sánchez e Rivera a vice-presidentes. É um acto irrelevante. Explica Pablo Simón: “Rajoy perdeu completamente a iniciativa política no momento em que declinou o mandato do Rei para formar governo. A sua única esperança é esperar que as negociações fracassem e, nesse caso, forçar novas eleições.” Ao renunciar, deixou a imagem de um líder esgotado e sem ideias.

A própria aposta nas eleições está hoje posta em causa. Duas operações anti-corrupção, em Valência e no PP de Madrid, e um inquérito judicial às obras na sede do partido voltaram a colocar o PP no pelourinho. A demissão de Esperanza Aguirre, chefe do PP de Madrid e inimiga de estimação de Rajoy, foi um convite à demissão do líder. Todos sabem que se o partido se apresentar a eleições com a mesma equipa dirigente, poderá ter resultados ainda mais desastrosos do que os de 20 de Dezembro. Os “barões” exigem eleições primárias de líderes e candidatos.

Um feixe de crises
Ao noticiar as crises políticas em si mesmas, corre-se o risco de esquecer o contexto. A Espanha não é a Bélgica e não sobreviveria a 541 dias sem governo. É um argumento a favor de Sánchez. Na Espanha cruzam-se vários fenómenos: o elevadíssimo desemprego e o risco de derrapagem financeira; o desgaste do modelo das autonomias sem meios financeiros para as suas competências; o descrédito da política, agravado pelos escândalos de corrupção; enfim, o processo independentista catalão, a mais grave ameaça ao Estado espanhol.

O que leva Enric Juliana, director adjunto do La Vanguardia, a concluir: “A Espanha volta a ser um dos elos fracos da Europa.”

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