O “nacional-alegrismo”

O apelo ao argumento patriótico é incendiário, mas não deixa de ser uma marca indelével de fragilidade e fraqueza.

1. De há muito que me preocupa uma profunda incompreensão da natureza e do lugar da política europeia por parte de muitos sectores da “classe” política. De cada vez que se fala da política portuguesa em Bruxelas ou noutros areópagos europeus e internacionais, logo emerge um punhado de políticos a rasgar as vestes e a bramir contra a falta de patriotismo de quem se atreveu a tratar de assuntos “nacionais” diante de instâncias externas. Na semana passada, quando, a propósito do semestre europeu, exprimi no Parlamento Europeu preocupação com o roteiro despesista da “pseudo-coligação” PS/extrema-esquerda, logo choveu um coro de críticas e a acusação de antipatriotismo. Não faltou quem dissesse que estava a fazer “queixinhas” de Portugal à burocracia europeia e, qual delator, estava a fazer denúncias para ver se a União “castigava” Portugal e os mercados derrapavam e “puniam” o nosso país e o nosso povo. Não faltam – com efeito, abundam – episódios como este, em que uma espécie de guarda dos “bons costumes” do “nacionalismo” e do “patriotismo” vigia com zelo e com deleite os políticos que ousam falar “lá fora” de assuntos “cá de dentro”.

2. A questão é especialmente grave porque ela procura desqualificar certos políticos bem como alguns comentadores, colando-lhes o labéu de deslealdade para com a pátria, de corrupção e corrosão dos valores de fidelidade à pátria. Do que se trata é, não propriamente de contrariar os argumentos usados, mas de desmoralizar e depreciar pessoalmente o autor da argumentação. E esta acusação, cada vez mais recorrente, reveste maior gravidade ultimamente, porque a facilidade com que se fala na dicotomia patriotas/antipatriotas está ao serviço da estratégia de radicalização em curso. Basicamente quem, no plano europeu, tentar defender as políticas que evitaram a entrada do país em bancarrota é tido como antipatriota e com isso é arremessado para o limbo dos imprestáveis e intocáveis.

3. Esta linha dura de identificação, quiçá “fichagem”, dos antipatriotas carece de senso, de siso e de sentido e não tem aderência à realidade. Quando se acusa um ministro de prejudicar o país, por tratar de assuntos nacionais num fórum europeu, faz-se geralmente uma impostação sujeita a ricochete. Nos últimos anos, o núcleo ungido dos patriotas fartou-se de criticar o Governo da coligação e as suas políticas em todos os fóruns internacionais e nunca ouviram dos visados nenhuma insinuação de antipatriotismo. Basta pensar na quantidade de vezes em que muitos dos higiénicos patriotas proclamaram urbi et orbi que a dívida lusa é impagável e no risco que essa proclamação poderia ter para o país, para logo nos darmos conta de que o argumentário “patrioteiro” é um expediente retórico de mera conveniência.

Esses tais, que se indignam com o perigo de ingerência europeia nos assuntos internos e se escandalizam com as declarações de políticos europeus sobre a política portuguesa, são rigorosa e exactamente os mesmos que falam sem parar sobre a política alemã e Angela Merkel, as vicissitudes húngaras e Viktor Orbán, as desditas gregas e Alexis Tsypras. Eles podem opinar sobre a Frente Nacional, as eleições catalãs e as posições de James Corbyn, mas os políticos europeus – especialmente se forem do PPE (essa genuína fonte do mal, nos recentes escritos de Pacheco Pereira) – têm de permanecer hirtos e silentes a respeito de toda e qualquer movimentação política em solo lusitano.

Este novo eixo de angelização/diabolização patriotas/antipatriotas resulta de um erro e de um logro de palmatória, que é a perspectivação da política europeia como pura política externa e das instâncias europeias como instâncias estranhas, exteriores ou alienígenas. Ora, ao invés do que pretendem os higienistas da pátria, a política europeia é política nacional, política interna ou, no pior dos cenários, um híbrido de política interna e de política externa. O grau de integração e de imbricação das plataformas políticas nacionais entre si e com o nível europeu é tal, que é impossível – e acrescento indesejável – conceber esses níveis ou plataformas como compartimentos estanques e apartados. Eis pelo que o tratamento de matérias nacionais pertinentes na esfera europeia ou vice-versa nada tem de anómalo ou de mefistofélico, antes é uma decorrência natural e até imperativa da ordem política hodierna. E, por isso, o recurso canhestro à segregação entre patriotas e não patriotas, consoante se cala ou se fala no espaço exterior, não passa de um truque retórico maquiavélico e perigoso ou, mais benignamente, de uma atávica manifestação de paroquialismo ou provincianismo. 

4. Mesmo antes, já havia na política portuguesa laivos de um “moralismo patriótico”. Na verdade, havia políticos que se consideravam os “donos da pátria toda” e que se julgavam mais patriotas que os restantes: é o caso bem conhecido de Manuel Alegre. E, por isso, de há muito que designo este fenómeno de “nacional-alegrismo”. Mas agora, no quadro do agudizar da bipolarização política, a situação agravou-se. Não por acaso, o PCP refere-se sempre a uma “política patriótica e de esquerda” como se toda a restante fosse contrária ao interesse nacional. E, com mestria, mais subtil e perigosamente, Pacheco Pereira já chegou a identificar os europeístas com os adeptos da dissolução filipina em Espanha. Mais recentemente, elege, aliás, o PPE como uma espécie de irradiador da submissão e da dependência. Tudo redunda naquele dualismo patriotas/antipatriotas que, para além de falso, radicaliza as posições políticas e contamina o debate público são e esclarecido. O apelo ao argumento patriótico é incendiário, mas não deixa de ser uma marca indelével de fragilidade e fraqueza.

P.S.: São muitos os que têm dito que se o Presidente houvesse antecipado eleições, não teria perdido a arma da dissolução. Enganam-se. Nunca poderia haver dissolução nos primeiros seis meses da nova Assembleia e estes colar-se-iam aos últimos seis meses do mandato.

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