A política saiu à rua, mas a vida e a solidão continuam

Nas conversas que se ouve nos passeios, nos cafés, há expectativa, mas também muitas interrogações sobre o acordo e o Governo de esquerda. Porém, mesmo os mais indiferentes admitem: o que está a acontecer é diferente e fez as pessoas olharem para a política e para o voto de outra forma.

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Enric Vives-Rubio
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De sacos de compras nas mãos, duas senhoras na casa dos 50 anos caminham calmamente na Avenida Almirante Reis, em Lisboa. “O que acha de Jerónimo de Sousa?”, pergunta uma delas. A amiga nem sabe o que pensa do líder do PCP que, a par do Bloco de Esquerda, chegou a acordo para apoiar um Governo do PS.

“Sei lá”, responde-lhe, enquanto pára diante de uma montra cheia de tachos, panelas e talheres. A amiga insiste: “Mas acha que vão fazer as coisas de forma diferente? Será que são iguais?” Aí, a resposta já é menos animada: “Eu acho que quem governa são os de lá de fora, não é quem está cá a dar a cara.”

Embora não haja, em cada esquina, uma conversa sobre o acordo inédito entre a esquerda, a política saiu de certa forma à rua. Na pastelaria Versailles, o empregado conta: “Todos os dias se fala disto aqui. Está tudo à espera do dia 11 [o dia a seguir às moções de rejeição serem votadas]. Costuma estar aí um grupo ao qual chamámos tertúlia sempre a falar disto. Não acho que vá mudar nada, mas, pronto, a esperança é a última a morrer, pode ser que façam melhor.”

No domingo à noite, na Avenida Almirante Reis, depois de se saber que o PS tinha aprovado por larga maioria o programa de Governo apoiado pelos comunistas e bloquistas, um senhor já bastante embriagado abre os braços e grita: “Quarta-feira, camaradas, um Governo comunista!”

Nesta segunda-feira, quando se começou a discutir o programa de Governo e na véspera de serem votadas as moções de rejeição, fomos novamente para a rua. Andámos de eléctrico, metro, autocarro. Na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dois alunos debatem a sua visão sobre como deve ser a sociedade.

Um deles explica que é de direita e que o dinheiro cumpre uma função: “Existe para diferenciar as pessoas que se esforçam mais e menos. É por isso que apoio uma política de direita.” O colega discorda e tem mesmo um sonho: construir uma cidade sem dinheiro, fundada na “abundância e na tecnologia”. Apesar de duvidar do sucesso da empreitada, o amigo garante-lhe que se, um dia, concorrer a eleições, vota nele.

No Campo Mártires de Pátria, há várias paredes pintadas com a frase: “Fartos do PSD/CDS a roubar velhos e emigrantes, Governo das esquerdas”. Ao passar em frente da inscrição, um senhor mostra-se entusiasmado: “Já devia ter sido há 40 anos.” Não diz o nome, só que tem mais de 70 anos, que trabalhou 42, que perdeu namoradas por causa da guerra, que lhe cortaram na reforma.

Não é o único com expectativas. José Coelho, 53 anos, tem uma oficina de restauro, também no Campo Mártires da Pátria e diante daquela inscrição. Trabalha de portas abertas, entre os candeeiros velhos que arranja. Já teve mais clientes, sofreu com a austeridade, com a crise. A mulher era secretária, ficou desempregada. Tem três filhos e o que o preocupa é o futuro deles. Por isso, diz: “Espero que haja uma mudança.” Mais: o que está a acontecer pode, pelo menos, alterar isto – a abstenção. Porquê? Porque mostrou às pessoas que não é sempre tudo igual, argumenta. “Mesmo que não seja uma grande mudança, se melhorar só um bocado já é uma grande diferença.”

Hélder Meireles está com o táxi estacionado no Rossio. Na rádio, dá o debate na Assembleia na República. O taxista, que votou PAN, admite que nunca ligou muito à política, mas agora está “mais interessado”. Neste caso não é por querer mudanças, pelo contrário: queria que o executivo de direita continuasse a governar. “Passos Coelho exagerou, mas fez o que tinha de ser feito.”

Ao final da tarde, depois de mais um dia de trabalho, várias pessoas entram no barco no Cais do Sodré. A maioria viaja sozinha, sem conhecidos para conversar. Na melhor das hipóteses, olham para o telemóvel, há um ou outro viajante de jornal na mão. Espreitam as notícias, é certo. Mas o barco segue em silêncio. De Lisboa para Cacilhas. E novamente em silêncio, de Cacilhas para Lisboa.

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