Os refugiados e Portugal, o Governo e a Europa

A situação europeia na matéria é de gravíssimo impasse. Mas o governo português pode ter um insuspeito papel mediador.

1. O Governo português errou em duas matérias cruciais de política europeia. Uma primeira, mais manifesta e mais importante: a matéria orçamental. A equipa das finanças perdeu credibilidade, tendo apresentado um esboço de orçamento diverso daquele que havia dado a entender que apresentaria nas negociações que precederam a sua entrega. Tanto mais que o dito esboço, com irreprimível manha e artimanha, não correspondia, nem de longe nem de perto, às exigências europeias que havia jurado respeitar. E perdeu credibilidade nas reuniões da Comissão e do Eurogrupo, com avanços e recuos pouco convincentes, com números adaptados ao sabor das circunstâncias e com a necessidade final da junção do misterioso plano B. Só assim obteve uma aprovação condicionada, sujeita a um regime de apertada vigilância. Esta saga pôs em causa a confiança no actual Governo e, muito em especial, na sua equipa das finanças. A confiança e credibilidade foram também profundamente abaladas pelas arremetidas do Primeiro-ministro contra o Governador do Banco de Portugal, que são já de si pouco compreensíveis no eixo Bruxelas-Francoforte, mas que com esta genica furiosa criaram a maior das perplexidades. Valha ao Governo português a fleuma revelada pelo Governador na sua última entrevista. Talvez tenha salvado a honra do convento…

2. Há uma segunda matéria em que falhámos rotundamente e de modo totalmente escusado, embora aí sem os holofotes da comunicação e sem impacto directo sobre a vida dos cidadãos. A falha é agora do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da área dos assuntos europeus, embora surpreendentemente secundada pelo Primeiro-Ministro. Refiro-me a um assunto, descurado na imprensa lusa, mas conhecido de todas as chancelarias europeias: a posição dura e áspera que, quase até ao fim, assumimos quanto ao acordo que atribui um estatuto especial ao Reino Unido. Portugal, velho aliado dos britânicos, com uma mesma posição geopolítica no seio da União, foi, em vários tabuleiros, dos mais renitentes e encarniçados opositores de um acordo com o Governo britânico. É certo que a velha Albion quase nada nos tem ajudado na nossa difícil vida europeia dos últimos anos. Mas a verdade é que, numa Europa puxada a leste e ao centro, pouco voltada para a dinâmica atlântica, a simples presença de um gigante atlantista no equilíbrio da União, é do interesse vital de Portugal. A posição geoestratégica de países como a Irlanda, a Holanda, a Suécia, a Dinamarca ou Portugal ficará profundamente desvalorizada e desguarnecida se o Reino Unido abandonar a União Europeia. Esta guerra não era uma guerra nossa e, tirando uma posição de princípio que não trucidasse as linhas mais vermelhas dos valores europeus, Portugal não ganhava nada com uma bravata nesta sede. É que nem sequer o número crescente (hoje muito relevante) de trabalhadores que temos em solo britânico é conhecido pela motivação do “turismo social”. Como alguém oportunamente escreveu, em diplomacia, o que não é necessário fazer-se, é necessário não se fazer…

3. Há diferentemente um ponto da política europeia em que penso que o actual Governo andou francamente bem e pode ainda andar melhor. Trata-se da crise dos refugiados, tema que o Primeiro-Ministro chamou mesmo à sua mão. Muitos julgam que Portugal não teria grande interesse em tocar este tema, por não lhe estar a sofrer os efeitos. Mas creio que andam mal. Por um lado, porque é um tema – para não dizer é o tema – que vai dominar a agenda política europeia. Por outro lado, porque é uma questão essencial de valores humanos e humanistas a que ninguém nem nenhum Estado deve ficar indiferente. Também e ainda, porque, mais dia menos dia, vai começar uma enormíssima e incontável vaga de refugiados da África subsaariana, que deverão percorrer o corredor da Líbia e que muito provavelmente, por razões de vária ordem, vão querer e vão aceitar Portugal como destino. Finalmente, porque – a vida internacional é mesmo assim – ter activos nesta área pode dar-nos margem para ter activos noutras. António Costa fez bem ao dar prioridade à questão nas conversações com Angela Merkel, que é a única líder que até agora percebeu o alcance do fenómeno. E fez ainda melhor, quando subiu a disponibilidade de acolhimento de Portugal para os 10.000 refugiados – número perfeitamente razoável, para o qual temos toda a capacidade e que pode, em certas condições, ser ampliado. Esteve igualmente bem ao procurar o contacto directo com o Governo grego, gesto que deveria estender ao italiano e a alguns estados balcânicos.

A situação europeia na matéria é de gravíssimo impasse. Mas o governo português, até porque parte “desinteressada” nas disputas mais quentes, pode ter um insuspeito papel mediador. Tem ministros com competência, sabedoria e vocação para isso: Constança Urbano de Sousa, na Administração Interna, Azeredo Lopes, na Defesa e, bem assim, Santos Silva (cuja inteligência e agilidade – embora muito desperdiçadas ao serviço da “máquina do pensamento único” em farta expansão – são indisputáveis). Com este trio de actores, Portugal pode mesmo fazer pontes e ajudar a Comissão a limitar danos neste dossiê explosivo. Aí os partidos da oposição, PSD e CDS, devem dar todo o apoio e ter toda a disponibilidade. É importante que tomem posição, que designem um interlocutor e que estimulem o Governo a levar por diante esta frente de diplomacia europeia. É matéria de interesse nacional, é substância de interesse vital europeu e é solo sagrado da mais elementar humanidade. Acredito que aqui podemos fazer a diferença ou, melhor, alguma diferença.

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