Morreu Armand Gatti, o poeta do teatro francês

Dramaturgo tinha 94 anos. Em 2000, fez uma conferência no Festival de Almada a acompanhar a encenação da sua peça O Cerco.

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Armand Gatti em Almada, em Julho de 2000 Miguel Silva
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O Cerco, peça de Armand Gatti encenada por Michel Simonot, esteve no Festival de Almada de 2000 Miguel Madeira

Poeta anarquista, dramaturgo, realizador, jornalista, repórter, resistente ao nazismo, Armand Gatti morreu esta quinta-feira no hospital militar Bégin, em Saint-Mandé, nos arredores de Paris, aos 94 anos.

Desaparece assim uma figura maior da poesia e do teatro do século XX, que em 2000 passou por Portugal para uma conferência no Festival de Teatro de Almada, a acompanhar a encenação da sua peça O Cerco (1960).

Este texto começou por ser um filme – L’Enclos, Prémio da Crítica em Cannes e de melhor realizador no Festival de Moscovo, em 1961 –, que aborda a experiência dos campos de concentração nazis. Foi apresentado em Almada pela mão do encenador francês Michel Simonot, que, na altura, em entrevista ao PÚBLICO, descreveu a escrita de Gatti como “uma errância à procura de uma língua, no sentido do texto, da escrita, capaz de transmitir aos outros o desejo de transformar o mundo”.

“Toda a criatividade de Gatti vem da política, da memória da sua existência, dos campos de concentração, da imagem do pai [um anarquista italiano]”, acrescentou o encenador, que lembrava também que Gatti “lia Michaux às árvores e aos planetas durante a Resistência, e as próprias árvores tornaram-se para ele uma obsessão, uma mitologia”.

Nascido em Monte Carlo, Mónaco, a 26 de Janeiro de 1924, Dante Sauveur (o seu nome de baptismo) foi realmente muito marcado pela figura dos pais, um varredor e uma mulher-a-dias a viver num bidonville. Passou pelo seminário, em Cannes, e, ainda adolescente, juntou-se à Resistência, tendo sido preso e deportado para um campo de trabalho, em 1942.

Numa biografia não isenta de ficções e polémica, Gatti chegou a dizer ter sido internado no campo de concentração de Neuengamme, afirmação de que viria a retractar-se em 2010, na sequência de uma carta que lhe fora dirigida por antigos prisioneiros desse campo, negando que o seu nome constasse da lista oficial das deportações. “Eu nunca estive no campo de Neuengamme, mas disse muitas vezes que estive perto de Neuengamme, num campo de trabalho, cujo nome foi trocado”, disse o dramaturgo, então citado pelo jornal Le Monde.

A experiência vivida nessa altura, vendo presos judeus a representar, foi fundamental para a sua descoberta do teatro, naquilo que classificou como "uma experiência fundadora", e que Gatti explicou com o seguinte lema: “Tentar formar homens não em função do seu estado civil, mas da sua possibilidade”.

Libertado ainda no decorrer da guerra, Gatti destacou-se na Resistência, a partir de Londres, em 1944, tendo sido condecorado após a Libertação.

Dedicou-se depois ao jornalismo – foi chefe de redacção do Libération –, com aventuras profissionais, e pessoais, em países como a Argélia, a China (que visitou acompanhado por figuras proeminentes da cultura francesa, como o escritor Michel Leiris, o filósofo Paul Ricoeur ou o cineasta Chris Marker), a Guatemala e a Irlanda.

Pelas suas reportagens, foi distinguido com o prémio francês de jornalismo Albert-Londres, em 1954. Nesta mesma década, começa a escrever teatro – em 1959, a sua peça de estreia, Le Crapaud Buffle, é encenada por Jean Vilar no Théâtre Récamier, a segunda sala do Teatro Nacional Popular, em Paris –, e em 1960 experimenta também o cinema, com o citado L'Enclos – a que se seguiriam três outras realizações, a última das quais, em 1983, Nous Étions Tous des Noms d’Arbres, dedicada aos nacionalistas irlandeses do IRA, que dois anos antes tinham morrido na sequência de greves de fome .

“Nós, os homens, temos nomes de árvores e as palavras que nascem da memória dos mortos e das suas lutas fazem de cada um de nós um 'planeta provisório', seres abertos ao conhecimento", dizia Michel Simonot sobre esta associação que Gatti fazia entre o homem e a natureza.

Outra terra de opressão e conflito, a Espanha de Franco, tinha sido tema da peça La passion en violet, jaune et rouge, em 1968 – a pedido do Governo espanhol, a peça seria proibida em França pelo Presidente De Gaulle, contra a vontade de André Malraux, ministro da Cultura, recorda o Le Monde.

Nesse mesmo ano, Armand Gatti faz nova viragem na sua obra, rompendo com o teatro institucional. Passa a “trabalhar em lugares fora das normas, e vira-se para a criação colectiva”, escreve Brigitte Salino (Le Monde). “Mas o poeta mantém-se, aquele que escreve com palavras loucas como o vento, belas como a esperança, e livres da preocupação de retratar a realidade na qual se inspira”, acrescenta a jornalista. Porque, "na sua obra, há sempre duas verdades: a verdade histórica e a verdade ‘gattiana’”.

 

 

 

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