Seres de um planeta provisório

É a memória do poeta anarquista Armand Gatti que vai estar em palco num espaço em que a palavra é a personagem central. Aí vão estar todos os seus mortos, o pai, os amigos, os revolucionários. Um "Cerco" em torno da ideia de revolução só possível através poesia. Pela mão do encenador Michel Simonot.

É sobre um homem que lia Michaux nas árvores, durante a Resistência, no "maquis" da floresta de Berbeyrolle, nos anos 40, que o dramaturgo e encenador Michel Simonot fala ao PÚBLICO, calorosamente, a propósito da estreia amanhã, às 20h, de "O Cerco", no Festival Internacional de Teatro de Almada, peça sobre alguns grandes combates deste século e sobre os mortos que os protagonizaram. É um espectáculo em que a palavra é a personagem central. O seu nome é Armand Gatti, um poeta que se dava com Michel Leiris, um anarquista que conhecia Mao e Fidel, um "compagnon de route" de Guevara e Paul Ricoeur, também cineasta e grande repórter dos jornais franceses, ex-chefe de redacção do "Libération", amigo de Piscator, Pierre Boulez, Kateb Yacine ou de John Cage. O poema "O Cerco" (L'Enclos"), escrito em 1960, foi primeiro construído como filme, depois como texto e só a seguir recriado como teatro, já nas mãos de Michel Simonot, um admirador e reinventor da obra de Gatti."Toda a criatividade de Gatti vem da política, da memória da sua existência, dos campos de concentração, da imagem do pai. Ele lia Michaux às árvores e aos planetas durante a Resistência e as próprias árvores ("Árvores que partem à conquista do céu") tornaram-se para ele uma obsessão, uma mitologia. Nós, os homens, temos nomes de árvores e as palavras que nascem da memória dos mortos e das suas lutas- como se conta em "O Cerco"-, fazem de cada um de nós um 'planeta provisório', seres abertos ao conhecimento", diz Michel Simonot.Um conhecimento que em Gatti é sinónimo de poesia - imaginário de palavras - que permite imaginar o mundo e transformá-lo: "conhecimento e poesia como acto revolucionário". Escreve Gatti em "O Cerco": "A morte tinha desaparecido/sob um amontoado de vegetais horríveis/coxeando atrás dos arames farpados/o possível tornava-se impossível/ e o impossível, quotidiano".Foi no campo de concentração de Linderman que Gatti descobriu a grande força da palavra, ao ouvir os cânticos "rabinos", visto que as palavras eram a única possibilidade de evasão. E foi aí também que os nomes, todos os nomes dos combatentes mortos, mesmo os que caíram na I Guerra Mundial, assumiram simbolicamente a humanidade em luta contra a opressão: Denis, Camille, François, Pinot, Pépé, Melanie, Blanche, Marcel Totilé, todos estão dentro do "Cerco".Talvez neste pedaço do poema que fala de Thierry morto, um amigo do poeta, se possa sentir toda a amargura e toda a crueldade de um texto que resistiu mais de 40 anos: "Thierry! Morte inumerável/de um ano de promiscuidade/de ruína/sem luta, sem murmúrio/partilhando a fome e a amizade/no olhar um do outro!/Trezentos e sessenta dias, Thierry!/E vi-te, sim, vi-te/com o teu crânio rapado de fresco/com o lenço vermelho deslavado/ e o casaco castanho gasto nos cotovelos/ e o pé envolto em trapos/(não tinha resistido à tortura)/Vi-te, sim/estendido no pátio/na terra gelada/Vi-te, Thierry, ao esvaziar a bacia."A escrita de Gatti é ainda hoje "uma errância à procura de uma língua, no sentido do texto, da escrita, capaz de transmitir aos outros o desejo de transformar o mundo. E quando enceno uma peça é para colocar em palco essa língua", diz Michel Simonot."Ainda havia palavras de passe" é a primeira frase do poema que simboliza toda a carga dramática do espectáculo espelhada na ideia de passagem das palavras "da cidade para o palco, a travessia para lá dos limites e dos cercos". Essas palavras são ditas por quatro actores profissionais franceses que transportam o poema, enquanto os actores portugueses (onze amadores) transmitem os fragmentos, funcionando como um coro à volta dos outros."O "Cerco" figura o limiar, o limite que cada um de nós - actor, amador, público - deve passar para aceder às palavras (aquelas que nos ligam à terra e aos planetas) e para as passar aos outros. No "Cerco", a mensagem para o espectador é dado pelo coro, porque é composto pelos representantes dos cidadãos, neste caso, os portugueses. Por isso, peço aos actores do coro uma postura não profissional", diz Simonot.É o coro que introduz o poema de Gatti, é ele que convoca os mortos, que constrói o espaço da palavra e cuida do texto. É também o coro que passa a palavras aos actores, dispostos no interior do cerco desenhado pelo cenário, num entrecruzamento permanente entre si e entre o público. Compete, por fim, aos actores circularem entre si o poema, respondendo ao apelo final do coro, deixando no ar a ideia de que as palavras não acabam, tal como os combates dos homens."Este é o meu objectivo principal, dar ao espectador o texto tal como Gatti o escreveu, descobrindo nele as possibilidade de leitura diversa que estão na sua essência, os relatos dentro da história que ele conta no poema e deixar ao espectador a ideia de que pode existir um mundo diferente", sublinha o encenador. Essas possibilidades, na leitura de Simonot, são seis e nelas se sustenta a arquitectura de "O Cerco": o relato do Pai, dos Nomes, do Eu, da Guerra, da Europa, dos Planetas. Relatos que vão ser dados depois de um exaustivo trabalho sobre o ritmo das palavras que são incorporadas no ritmo do corpo dos actores e onde não há personagens já que elas são o pretexto para o texto/corpo que é dito.Michel Simonot, além de dramaturgo é director do Théâtre de L' Archipel.

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