Clima: perante recordes de 2023, Guterres pede “bóia de salvação” para a Terra

Relatório da Organização Meteorológica Mundial dá um retrato de 2023, o ano mais quente desde que há registo. “A crise climática é o desafio definidor que a humanidade enfrenta”, diz secretária-geral.

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A destruição deixada pelo furacão Otis na região costeira de Acapulco, no México QUETZALLI NICTE-HA/Reuters
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O Estado do Clima Global 2023, o relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) dedicado ao clima e aos seus efeitos meteorológicos vividos pela Terra no último ano, reforça aquilo que já era uma certeza: em 2023, o planeta viveu o mais quente ano desde que há registo. Ao longo daqueles 12 meses, a temperatura média junto à superfície foi 1,45 graus Celsius acima do nível pré-industrial. Ao mesmo tempo, houve recordes a nível da temperatura dos oceanos à superfície e os glaciares sofreram a maior perda de volume alguma vez registada.

“Foi de longe o ano mais quente registado”, escreve a recém-empossada secretária-geral da OMM, Celeste Saulo, que assina o prefácio do relatório. “Nunca estivemos tão perto – embora, para já, seja temporário – do limite inferior de 1,5 graus do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas.”

O Copérnico, o serviço de observação da Terra da União Europeia, anunciou em Janeiro que a temperatura média de 2023 foi 1,49 graus acima dos valores pré-industriais, ficando a uma distância mínima dos 1,5 graus. O resultado apresentado agora pela OMM, de 1,45 graus, “baseia-se numa síntese de seis conjuntos de dados das temperaturas globais”, lê-se no relatório. O ano de “2023 foi o mais quente do registo instrumental de 174 anos em cada um dos seis conjuntos de dados”, sublinha o documento.

De acordo com os dados da OMM, 2023 fica 0,16 graus à frente do anterior ano mais quente de sempre, 2016, que teve uma temperatura média 1,29 graus acima dos valores pré-industriais. Por comparação, o ano de 2022 teve uma temperatura média 1,15 graus acima dos valores pré-industriais, de acordo com o relatório da OMM de 2023. “A mudança das condições da La Niña para o El Niño a meio de 2023 contribuiu para o aumento rápido de temperatura de 2022 para 2023”, segundo o comunicado da OMM sobre o novo relatório.

“A temperatura global média de 2014-2023 é 1,20 graus Celsius acima da média de 1850-1900, e é o período de dez anos mais quente registado”, lê-se, por sua vez, no novo relatório.

Esta tendência é a consequência mais evidente do aumento da concentração atmosférica dos gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono, emitido devido à mão humana durante a queima de combustíveis fósseis, como o petróleo, o gás natural e o carvão. Com um efeito de estufa mais poderoso, é retido mais calor na atmosfera e nos oceanos, desencadeando fenómenos mais extremos que afectam a pluviosidade, a seca, as tempestades e as ondas de calor.

“A poluição causada pelos combustíveis fósseis está a provocar um caos climático sem precedentes”, alerta António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), citado pela Lusa. A OMM é uma agência especializada da ONU.

Uma mulher sentada nos destroços após a passagem do furacão Idalia, na Florida, nos Estados Unidos ,Uma mulher sentada nos destroços após a passagem do furacão Idalia, na Florida, nos Estados Unidos CHENEY ORR/Reuters,CHENEY ORR/Reuters
Parte do lago Titicaca seco em Outubro, na Bolívia CLAUDIA MORALES/Reuters
O incêndio em Maui, no Havai, em Agosto HAWAI'I DLNR/Reuters
Um deslizamento de terras em Setembro em Hong Kong, na China, após chuvas torrenciais TYRONE SIU/Reuters
Um homem chora a morte das duas filhas, após o desastre causado pelo ciclone Daniel, na Líbia, em Setembro ESAM OMRAN AL-FETORI/Reuters
Dois homens dão água a uma ovelha, durante um incêndio florestal perto de Atenas, na Grécia, em Agosto ALKIS KONSTANTINIDIS/Reuters
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Uma mulher sentada nos destroços após a passagem do furacão Idalia, na Florida, nos Estados Unidos ,Uma mulher sentada nos destroços após a passagem do furacão Idalia, na Florida, nos Estados Unidos CHENEY ORR/Reuters,CHENEY ORR/Reuters

O planeta está “à beira do colapso”, diz ainda António Guterres. Mas há esperança, defende. “Ainda há tempo de lançar uma bóia de salvação às pessoas e ao planeta” diz. “Cada fracção de um grau de aquecimento global tem um impacto no futuro da vida na Terra.”

O relatório aponta não só os fenómenos físicos das alterações climáticas, como o aumento da temperatura na atmosfera e nos oceanos, e a dinâmica da criosfera, mas também os grandes fenómenos ligados ao clima que tiveram consequências terríveis em 2023, como os incêndios no Havai e no Canadá e os ciclones que se abateram na Líbia, em Moçambique e no México.

“A crise climática é o desafio definidor que a humanidade enfrenta”, afirma Celeste Saulo. “As alterações climáticas são muito mais do que as temperaturas. O que testemunhámos em 2023, especialmente o calor do oceano, o recuo dos glaciares e a perda de gelo marinho na Antárctida, sem precedentes, são motivos de especial preocupação.”

Fenómenos extremos e impactos

As temperaturas superficiais do oceano mantiveram-se as mais altas de sempre de Abril em diante. A quantidade de calor retido no oceano atingiu o nível mais alto em 2023. “É esperado que o aquecimento vá continuar – uma mudança que é irreversível à escala das centenas a milhares de anos”, lê-se no comunicado.

Os 60 glaciares de referência usados para o estudo da criosfera dos continentes (ficam de fora a Gronelândia e a Antárctida) mostraram que durante o ano hidrológico 2022-2023 os glaciares perderam a maior quantidade de gelo desde 1950, quando se começou a fazer este registo. Esta perda foi, em grande medida, alimentada pelo que ocorreu nos glaciares europeus e norte-americanos. “Na Suíça, os glaciares perderam cerca de 10% do seu volume restante nos últimos dois anos”, lê-se no comunicado.

A Gronelândia, que viveu o seu Verão mais quente desde que há registo, perdeu 217 gigatoneladas de gelo durante o ano hidrológico 2022-2023. Já a Antárctida teve um ano de mínimos, atingindo um mínimo absoluto de gelo marinho em Fevereiro e entre os meses de Junho e Novembro, altura de Inverno e Primavera naquela região.

Em relação aos eventos extremos, o relatório refere os efeitos do ciclone Daniel, que provocou em Setembro mais de 2000 mortes na Líbia e causou chuvas torrenciais na Grécia, na Bulgária e na Turquia, do ciclone Freddy, uma prolongada tempestade com impactos em Moçambique, em Madagáscar e no Malawi em Março, o ciclone Mocha, que atingiu a baía de Bengala, provocando 1,7 milhões de deslocados no Sri Lanka, na Birmânia e na Índia, em Maio, e o furacão Otis, que atingiu a categoria cinco e arrasou a zona costeira de Acapulco no México, em Outubro, matando 47 pessoas e provocando danos de 13,83 mil milhões de euros.

O ano de 2023 ficou ainda marcado pelos intensos incêndios no Canadá, que queimaram 149.000 quilómetros quadrados (Portugal tem 92.212 quilómetros quadrados de área), o incêndio na ilha de Maui, no Havai, que matou mais de 100 pessoas, uma enorme inundação no Corno de África, que deslocou 1,8 milhões de pessoas na Etiópia, no Burundi, no Sudão do Sul, na Tanzânia, no Uganda, na Somália e no Quénia, além do calor extremo sentido no Norte de África e no Mediterrâneo e de secas prolongadas que atingiram partes da Península Ibérica, do Sudoeste e do Centro da Ásia, da América Central e da América do Sul.

“Os perigos do clima e da meteorologia exacerbaram os problemas de segurança alimentar, as deslocalizações de populações e o impacto nas populações vulneráveis”, lê-se no comunicado. “Continuaram a desencadear deslocalizações prolongadas, quer novas, quer secundárias, e aumentaram a vulnerabilidade de muitas pessoas que já estavam desenraizadas devido a situações complexas e de causas múltiplas de conflito e violência”, alerta o documento, referindo que estes fenómenos extremos agravam os problemas da fome um pouco por todo o mundo.

“Espero que este relatório vá aumentar a consciência da necessidade vital de aumentar a escala de urgência e de ambição da acção climática”, conclui Celeste Saulo.

Notícia actualizada às 15h30 de 19 de Março com as declarações do secretário-geral da ONU, António Guterres.

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