Clima: “Não há santuários, as consequências atingem todos os países”

Académico português faz uma avaliação da conduta da humanidade no contexto das alterações climáticas: “Só é responsável quem é livre e quem tem capacidade de se autoconter. Nós não temos.”

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O filósofo e pensador Viriato Soromenho-Marques Rui Gaudêncio
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Desde o final da década de 1970 que Viriato Soromenho-Marques, filósofo e catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem pensado e escrito sobre as questões ambientais e do clima. Numa breve entrevista ao PÚBLICO, o pensador reflecte acerca do momento que a humanidade está a viver em relação às consequências das alterações climáticas. Para Soromenho-Marques, a humanidade está num momento profundo de autocrítica e há a necessidade de novas lideranças políticas comprometidas com o futuro. “Se quisermos fazer com que as coisas melhorem, temos de dar o nosso contributo.”

Qual é a sua percepção acerca do momento que estamos a viver?
Imagine que estamos no teatro nacional. Podemos analisar a sua história através das grandes peças que lá passaram. Até agora, a história da humanidade era um bocadinho o teatro nacional. Temos tido civilizações, conflitos violentos, ascensões e decadências de impérios. A única coisa que se tem mantido é o planeta dos últimos 12.000 anos, quando a humanidade se tornou uma espécie muito bem sucedida. Mas neste momento a peça que estamos a representar está a destruir o palco. Estamos a destruir o teatro nacional. E estamos empenhados a fazer isso de forma organizada, sistemática e metódica.

Temos tido uma visão da história muito positiva em relação ao fenómeno da modernidade. Conquistámos como espécie uma liberdade e um poder, através do Estado moderno, da tecnociência e da economia de mercado, que nos guia à escala planetária. Mas estamos num processo de uma profunda e amarga crítica do próprio humanismo. Estamos a destruir o habitat da humanidade, mas também estamos a destruir a auto-imagem que tínhamos de nós próprios. Somos poderosos, mas irresponsáveis. Só é responsável quem é livre e quem tem capacidade de se autoconter. Nós não temos.

Há mais eventos extremos e recordes climáticos ou há mais atenção dos media?
É uma conjugação das duas coisas. Há um terceiro aspecto. Desde 2020 que começa a desvanecer-se uma espécie de mantra de que as consequências das alterações climáticas estão distribuídas pelo mundo e os mais vulneráveis é que iriam ser atingidos. Mas o que aconteceu foi a intensificação de grandes catástrofes ambientais climáticas nos países desenvolvidos: no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália, na Europa Central. A Alemanha teve cento e tal mortos em 2021, no Verão, afogados. Não há santuários. As consequências atingem todos os países.

Esta situação poderá gerar uma nova percepção por parte das pessoas?
As pessoas estão assustadas, desorientadas, sentem-se impotentes. Votam e percebem que a democracia é manietada, que o poder real não está no voto, mas no capital, na compra das decisões. Eu acredito no valor exemplificativo que as boas lideranças podem trazer. As pessoas, quando estão com medo, colocam a coragem, que todos nós temos, um bocadinho em stand by. E tem de ser o terreno da política, termos um conjunto de condições que levam ao aparecimento de lideranças políticas comprometidas, que percebem que o que está em causa é o futuro, são os nossos filhos, os nossos netos.

Acha que esta crise vai produzir um maior envolvimento dos cidadãos?
Espero que sim. O medo não é o melhor estado de espírito para uma reflexão crítica. Não há nenhuma garantia de que o que está a acontecer e o agravamento desta situação coloquem o comboio da nossa civilização tecnológica no carril correcto.

O que poderá estar a fazer é a intensificar os esforços que estão a ser realizados por todo o mundo de experiências de governação mais sustentável, inovações nas práticas agrícolas, no urbanismo, no ordenamento do território. A própria academia começa a dar mais espaço nas áreas de investigação que procuram soluções para esse problema e não intensificam o velho método de economia extractivista e do crescimento.

A questão fundamental aqui é quando haverá um tipping point social. Há uma altura em que um conjunto de acontecimentos provoca uma mudança no estado de espírito da população que facilita mudanças mais virtuosas. Se quisermos fazer com que as coisas melhorem, temos de dar o nosso contributo.

Perante este cenário, como é que cada um pode encontrar esperança?
No conhecimento. Numa fase inicial, o conhecimento pode ser uma fonte de angústia, porque coloca-nos perante o estado do mundo. Vejo pelos meus alunos, a primeira reacção é de angústia. Mas a partir do momento em que começam a entrar numa actividade cívica organizada, começam a medir um bocadinho o poder.

A acção é terapêutica, porque é uma forma de medirmos o poder que temos. É completamente diferente estar a enfrentar uma crise de uma dimensão única na história da humanidade em movimento, em luta, em colaboração com os outros, em aumento do autoconhecimento – porque percebemos como reagimos perante situações difíceis, como dialogamos com os que pensam de forma diferente. Temos sentimentos opostos: umas vezes, cansaço, outras, satisfação. Umas vezes pensamos que estamos a perder tempo, outras que estamos a fazer o que é justo. E aquilo que é justo é válido em si próprio. O que nos torna doentes é a impotência.

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