Nova biografia de Juan Carlos, O Rei sem Abrigo: “A história há-de reabilitá-lo”

José de Bouza Serrano é especialista em realeza e um admirador confesso de Juan Carlos. “O que ele fez por Espanha é infinitamente superior ao final de reinado”, defende em conversa com o PÚBLICO.

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Juan Carlos e José de Bouza Serrano em 2010 na Madeira DR

José de Bouza Serrano era só um adolescente quando conheceu Juan Carlos em Lisboa. Então, Espanha ainda não tinha voltado a ser uma monarquia e o espanhol vivia em Portugal, ansiando pelo dia em que subiria ao trono. Anos mais tarde, voltou a encontrá-lo quando foi diplomata na Embaixada de Portugal, em Madrid. Sempre o admirou e agora presta-lhe homenagem com a biografia O Rei sem Abrigo​, que chega às livrarias nesta terça-feira com edição da Oficina do Livro.

Pode parecer mórbido, mas é pelo fim da vida de Juan Carlos que o antigo chefe de protocolo do Estado português inicia a biografia, que “teve um longo período de incubação”. Isto tudo porque o autor se confessa admirador pessoal do rei emérito e “não o podia ilibar deste final de reinado”, porque “as biografias têm de ser verdadeiras”. E esclarece: “É difícil justificar a última parte da vida dele. Mas, ponderando, o que ele fez por Espanha é infinitamente superior ao final de reinado. A história há-de reabilitá-lo.”

Bouza Serrano refere-se aos escândalos de corrupção e infidelidades (a que chama “a grave doença de Corinna Vírus”) que terão levado Juan Carlos a abdicar a favor do filho, Felipe VI, em 2014. “Os reis não têm sindicato, nem horário, mas são escrutinados todos os dias. Há uma bolsa de valores onde sobem e descem. E os espanhóis sentiram-se enganados por Juan Carlos”, contextualiza.

Ainda assim, espera que o antigo rei não regresse definitivamente a Espanha apenas para habitar a sua morada final: o panteão dos reis no Mosteiro do Escorial, nos arredores de Madrid. É a essa temática que dedica o primeiro capítulo da biografia. “Não tem onde poder morrer”, declara, lembrando que o panteão estará ocupado assim que os pais de Juan Carlos, Juan e Maria Mercedes, que estão na antecâmara de decomposição, forem transferidos para as sepulturas.

E teme que o governo espanhol se recuse a construir um novo túmulo para o emérito auto-exilado. “Nem abrigo tem. Quando sopram ventos de República, pedir milhões para refazer um panteão parece-me improvável”, observa. Ainda assim, mantém alguma esperança de que Juan Carlos, com 86 anos, possa voltar a Espanha antes de morrer. “Seria uma grande injustiça [se morresse no exílio] com tudo o que fez pelo país. Foi ele o motor da mudança.”

A mudança é a recuperação da democracia em Espanha, depois do regime totalitário de Franco, até 1975, ano em que subiu ao trono e se recuperou a monarquia no país vizinho. “Sabia que uma monarquia só o poderia ser sendo democrática”, disse o soberano em 2000, quando celebrou 25 anos de reinado.

Feita a transição democrática, analisa Bouza Serrano, Juan Carlos “descansou” e decidiu aproveitar a vida, cedendo a alguns caprichos que haviam de lhe custar caro. “Baixou as defesas e acreditava na boa sorte.” No livro do embaixador há ainda uma secção dedicada à “relação atribulada” do espanhol com o dinheiro. “Tem tudo que ver com a sua infância, quando não tinham dinheiro e viviam com alguma austeridade”, acredita.

A infância do rei também é merecedora de atenção no novo livro e, apesar de ser admirador do biografado, Bouza Serrano não se inibe de recordar um dos episódios mais dramáticos, quando o jovem Juanito mata acidentalmente o irmão Alfonsito, no capítulo que intitula de “a tragédia da quinta-feira Santa”.

Apesar de várias suposições sobre o que terá acontecido ao certo naquele dia na Villa Giralda, no Estoril, o autor recorre-se das memórias de membros da família, incluindo da mãe de Juan Carlos, Maria Mercedes. E escreve: “Não se sabe exactamente como ocorreu o acidente fatal, mas parece que, em má hora, a bala entrou pelo nariz de Don Alfonsito e alojou-se-lhe no cérebro. O pequeno revolver de calibre 22 estava nas mãos de Don Juan Carlos e o disparo foi a curta distância.”

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Juan Carlos e Sofia no funeral de Isabel II, em 2022 Reuters/Pool

“Dramatismo dos contos de fadas”

A tragédia não impediu que chegasse ao trono de Espanha e reinasse quase 40 anos, ao lado da sempre perseverante rainha Sofia, com quem se casou em 1962. “O marido dizia que ela era uma grande profissional. Ele foi tão infiel, mas ela nunca pôde demonstrar. São as aparências”, nota o especialista. A rainha emérita continua a poder viver no Palácio de Zarzuela, enquanto Juan se exilou em Abu Dhabi, desde 2020, “onde é tratado regiamente e está longe do radar das finanças”.

Em 2021, o emérito regularizou a situação fiscal com um pagamento de 4,4 milhões de euros de impostos retroactivos. Ainda assim, a relação com Corinna Larsen e o escândalo de ter recebido milhões de um antigo monarca saudita, para criar a ligação de TGV a Meca, abalaram a sua reputação entre os espanhóis. “Os mais novos nunca viveram no franquismo, não percebem a sua importância”, lamenta.

Apesar de a monarquia ser frágil em Espanha, Bouza Serrano considera que este regime foi “o único que conseguiu unificar” o país e espera que os esforços de Juan Carlos não tenham sido em vão. “A coroa tem a vantagem e o privilégio de unir”, insiste.

Por cá, apesar de Portugal ser uma República desde 1910, o fascínio com a realeza também sobrevive, ao ponto de se editarem dois livros no mesmo dia sobre o tema ─ O Rei sem Abrigo, de Bouza Serrano, e De Plebeias a Princesas e Rainhas, de Alberto Miranda, pela Guerra&Paz. “É o dramatismo do conto de fadas. Foram muito felizes e comeram perdizes. Há um mistério inerente à monarquia”, assevera o autor.

Ele é um apaixonado pelo mistério. “Um monárquico ao serviço da República”, como se costuma definir. Depois de publicado o livro que tanto lhe custou a escrever, só falta falar sobre a obra a Juan Carlos. “Não falo com o rei há uns dez anos. Não lhe disse que estava a escrever o livro, mas vou enviar-lhe um exemplar”, promete.

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