Chegar de barco à Ilha da Culatra vai ter novas regras para proteger a ria Formosa

Projecto cria forma de ancorar embarcações que protege as pradarias marinhas e ajudará a financiar fundo ambiental de transição energética.

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Silvia Padinha, presidente da Associação dos Moradores da Ilha da Culatra Daniel Rocha
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Há dias de Verão em que chega a haver 200 embarcações ancoradas junto à ilha da Culatra, no Parque Natural da Ria Formosa, que ao lançarem âncora à água destroem as pradarias marinhas. “É preciso regular isto”, alertou Joaquim Castelão Rodrigues, director regional da Conservação da Natureza e Florestas do Algarve. É por isso que a Culatra vai ter o primeiro fundeadouro ecológico da Ria Formosa, que servirá também para financiar o desenvolvimento de uma comunidade de energia sustentável na ilha.

Neste momento, as embarcações de recreio andam um pouco por toda a Ria Formosa, ancorando onde lhes convém. “Isto traz danos claros para o ambiente, nomeadamente para os fundos marinhos, para as ervas marinhas”, adiantou ao Azul André Pacheco, investigador do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve, e coordenador do projecto Culatra 2030 – seleccionado como um dos seis projectos-piloto do Programa Energia Limpa para as Ilhas da União Europeia.

Se não houver estruturas para acolher os barcos, estes lançam a âncora à água e, ao fazê-lo, arrancam as plantas que formam pradarias marinhas, que são berçários de espécies como cavalos-marinhos, e absorvem dióxido de carbono da atmosfera. “Outra coisa é a capacidade de carga. Dando um exemplo: se num estacionamento que tem uma lotação de 50 lugares tiver lá 200 carros, ou 1000, não é só a ocupação. Aquelas pessoas estão a produzir lixo, a ter um impacto na saúde do ecossistema”, explicou André Pacheco, para dar uma ideia do que se está a passar com a navegação e ancoragem desordenada de embarcações na ria Formosa.

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Cavalos-marinhos da Ria Formosa são uma das espécies prejudicadas pela destruição das pradarias marinhas quando as embarcações lançam âncora sem regras Virgílio Rodrigues

“As âncoras destroem as pradarias marinhas, que são zonas de seba (Zostera marina) e sebarrinha (Zostera noltii), importantes para manter a diversidade de peixe e marisco, o ecossistema muito rico que é o sustento de muitas famílias, principalmente as populações locais, como é o caso da Culatra”, diz Sílvia Padinha, dirigente da Associação de Moradores da Ilha da Culatra (AMIC). “Preocupa-nos a forma como tem vindo a crescer o número de embarcações que aqui fundeia, porque é gratuito e ninguém fiscaliza”, contou ao Azul.

“Aqui vivem 400 famílias, cerca de 900 pessoas, somos pescadores, mariscadores, vivemos da pesca e da apanha de bivalves na Ria Formosa. A qualidade desta água da ria é quase tão importante para nós como a qualidade da água que bebemos”, sublinha Sílvia Padinha.

Armona e Farol a seguir

A ria Formosa estende-se desde o Ancão até à Manta Rota e, para começar a ordenar a náutica de recreio na ria, o Instituto Nacional da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) mediou a instalação de um fundeadouro (uma área delimitada na qual existem vários ancoradouros) na Ilha da Culatra com amarrações que protejam os fundos marinhos. O protocolo para o financiamento dos estudos e montagem da estrutura foi assinado nesta quinta-feira na sede da AMIC, com a presença do secretário de Estado da Conservação da Natureza e Florestas, João Paulo Catarino.

O fundeadouro terá capacidade para a ancoragem de 57 embarcações (48 para barcos até 12 metros, e os restantes nove para os que tenham até 18 metros), que estarão disponíveis já para o próximo Verão. A estrutura deverá estar instalada em Fevereiro de 2024, diz a agência Lusa.

“O ICNF, preocupado com a preservação dos valores naturais existentes na ria Formosa, sensibilizou o secretário de estado João Paulo Catarino, que conseguiu que o Fundo Ambiental alocasse para este ano e para o ano que vem uma verba de 500 mil euros, para fazer o estudo de batimetria de dez fundeadouros e depois instalar o maior número possível destas estruturas”, contou Castelão Rodrigues.

O objectivo é que para o ano sejam instalados pelo menos mais dois fundeadouros, para além do da Culatra: na ilha da Armona (Olhão) e na ilha do Farol (Faro), adiantou o responsável do ICNF. “Os estudos estão todos concluídos, os levantamentos biológicos, para ver que fauna e flora é que lá existe e que não queremos que a intervenção prejudique”, adiantou Castelão Rodrigues.

Os fundos marinhos ficarão protegidos porque, em vez de ser preciso lançar âncora, as embarcações vão ancorar em pontos fixos, que funcionam como recifes artificiais, explicou André Pacheco. “Assim já não há o arrastamento das âncoras pelo fundo marinho, que destrói os fundos”, adianta. “Será como no Parque Marinho Luiz Saldanha, no Parque Natural da Arrábida, onde também há uma zona de fundeadouro”, exemplificou.

Na verdade, o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Ria Formosa georreferenciou em 2009 identificou 44 locais onde seria possível ter um fundeadouro, para ordenar o turismo náutico. “Acontece que, infelizmente, nenhum dos fundeadouros foi posto em prática”, até à data, salienta o responsável do ICNF. A gestão destes espaços cabe a outras entidades, como a Docapesca, a Administração dos Portos de Sines e Algarve e a Agência Portuguesa do Ambiente, sublinhou.

“Isto terá tido a ver com opções estratégicas. Dentro da ria Formosa há uma série de entidades com jurisdição sobre a área do parque natural e o desenvolvimento dos fundeadouros nunca foi uma aposta, se calhar foi-se mais pelo desenvolvimento de marinas ou portos”, sustenta André Pacheco.

Combater a pobreza energética

“O turismo náutico é bastante importante, mas é preciso que tenha regras, para ser um destino turístico de qualidade, procurado pelas pessoas que estão disponíveis para usufruir desse espaço pagando um determinado valor. Para que depois esse valor seja reinvestido na protecção ambiental”, adiantou o investigador da Universidade do Algarve, para explicar a outra parte deste projecto.

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Mariscadores da apanha de bivalves na ilha da Culatra Daniel Rocha

O fundeadouro será gerido e explorado pela Associação de Moradores da Ilha da Culatra. “Não é que esperemos que nos possa trazer grandes lucros financeiros, a questão da protecção do ecossistema é o que mais nos importa. Mas as receitas do fundeadouro, como os serviços da recolha de luxo ou de transportes que sejam necessários, e que a AMIC pode fazer, vão reverter para um fundo ambiental”, explicou Sílvia Padinha.

“O Fundo Ambiental e de Responsabilidade Social Culatra 2030 foi criado para a transição energética, ordenamento do território, sustentabilidade ambiental, coesão social, emprego e dinamização da economia circular”, disse, por seu lado, André Pacheco. Montar painéis solares e criar uma comunidade de energia renovável na ilha, que ajude a combater a pobreza energética, é um dos objectivos do projecto, explicou Sílvia Padinha.

“Todas estas iniciativas vão ao encontro de um compromisso que a Culatra já assumiu, de criar práticas e hábitos mais sustentáveis, e que todos os que nos visitam tenham também essa consciência e sejam nossos parceiros para criar uma ria Formosa mais saudável”, diz a dirigente da associação de moradores. “O nosso exemplo poderá ser replicado em qualquer outro sítio do mundo”, concluiu.

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