Quando a Marinha perdeu a “guerra” na ilha da Culatra

Ambientalistas prestaram homenagem ao fundador da associação Almargem evocando o 25º aniversário da suspensão dos exercícios de fogos reais e rebentamentos explosivos em plena ria Formosa.

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evr Enric Vives-Rubio

O actual presidente do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, Nuno Banza, integrou o grupo dos quatro jovens activistas que venceram uma guerra contra a Marinha há 25 anos na ilha da Culatra/Hangares. Em causa estava a defesa das colónias das andorinhas-do-mar e de outras aves que nidificam nas ilhas-barreira da ria Formosa. A operação, desencadeada na madrugada do último dia do mês de Junho de 1995 - quando se iria dar inicio aos exercícios de fogos reais e rebentamentos de minas - não mais foi esquecida. O êxito do plano, gizado em segredo, deveu-se em grande parte ao contributo de um “agente infiltrado” no aparelho do Estado. A vitória, agora evocada, foi pretexto para uma homenagem ao fundador da associação ambientalista da Almargem, João Santos, falecido há cerca de ano e meio

Todos os anos, por esta época, nos Hangares - sítio na ilha da Culatra com uma área afecta à Marinha - tudo entrava em desassossego. Os alunos da escola da Base Naval de Lisboa, no Alfeite, realizam as provas práticas de desminagem integradas no curso de mergulhadores em pleno Parque Natural da Ria Formosa (PNRF).

Os rebentamentos dos engenhos explosivos não perturbavam apenas as férias dos veraneantes. As aves juvenis, acabadas de sair dos ninhos, caíam por terra antes de levantar voo. O regulamento do PNRF proibia, e mantém, a interdição do “exercício de quaisquer actividades que prejudiquem significativamente o ambiente e o equilíbrio natural”. Porém, as manobras militares beneficiavam de uma medida de excepção para se poderem realizar. O então director do Parque, Nuno Lecoq, sentia-se impotente para enfrentar a armada. A associação ambientalista Almargem foi o seu braço armado nesta luta. Sem usar armas, quatro jovens activistas acabariam por obrigar a marinha a levantar ferros. No terreno ficaram as estruturas militares, abandonadas há 25 anos.

A história da operação contra a armada resume-se em poucas linhas. Na madrugada do dia 30 de Junho de 1995, quatro jovens foram colocar na rede da vedação do polígono de tiro dos Hangares uma faixa, com a seguinte inscrição: “Marinha faz guerra às aves”. A tarjeta ficou virada para o canal de passagem dos barcos da carreira para as ilhas-barreira. “Pouco tempo depois chegaram os fuzileiros e retiraram a faixa”, recordou Nuno Banza. Mas estava dado o “tiro” de partida para uma manifestação sem precedentes. Passo seguinte: avança a “infantaria” – ou seja, os jovens da Almargem, capitaneados por João Santos - vão explicar aos moradores e veraneantes o que se está a passar. Os pescadores juntam-se aos protestos, apontando as fissuras nas paredes das casas, causadas pelas explosões nos anos anteriores. Marinha faz guerra às aves e turistas, titulou na altura o PÚBLICO na peça de relato dos acontecimentos​

Na passada terça-feira, ao final da tarde, alguns desses históricos activistas juntaram-se para evocar a efeméride e reviver “outros tempos”, quando a região começava a despertar para os valores ambientais. A justificação para o reencontro foi a homenagem a João Santos, falecido aos 66 anos, na véspera de Natal de 2018, em Loulé. Nuno Banza e João Ministro foram dois dos mais destacados sócios desta associação, conhecida por ser uma das primeiras vozes a erguer-se contra a “betonização” do litoral algarvio. 

Nuno Lecoq, aposentado, reapareceu no encontro. “João Santos dava a cara, eu não podia aparecer”, recordou, lembrando ainda uma outra batalha em que esteve envolvido: as primeiras demolições de casas na ria Formosa. Sentados à mesa do café Janinho, na Culatra, desfiaram-se as memórias deste episódio que marcou uma geração. “Uma boa causa”, observou a presidente da Associação de Moradores da Culatra, Sílvia Padinha, dando as “boas-vindas” aos presentes.

Nuno Banza contextualizou o episódio, dando a conhecer um detalhe que poderá ter mudado o rumo dos acontecimentos “Um ano antes, em 1994, Mário Soares veio aqui [Culatra] fazer uma presidência aberta e as pessoas queixaram-se dos estragos nas casas”. No ano seguinte, a Marinha, para se livrar dos protestos, antecipa os exercícios em cerca de um mês.“Não é possível, as aves ainda estão nos ninhos”, protestou na altura Nuno Lecoq, sem êxito. “O país tem de ter os seus mergulhadores preparados para a desminagem”, justificou, na altura, o Chefe de Estado-Maior da Armada.

Nuno Lecoq decidiu ir bater à porta da Almargem e pedir ajuda à associação. De imediato apareceram voluntários para levar a cabo a operação. As acções da Greenpeace alimentavam, na altura, os sonhos de muitos jovens. O Estado-Maior da Armada, pressionado em várias frentes - desde o palácio de Belém até aos pescadores - decide suspender os exercícios militares.

Esta semana, o Conselho Directivo do ICNF, reunido na sede do PNRF, decidiu assinalar a data prestando uma homenagem póstuma a João Santos, “conhecido pelo seu pragmatismo, mas também pela sua inteligência e resiliência, associada a um humor sagaz”. Do seu percurso, salienta-se a luta “por um desenvolvimento mais sustentável para a região”. O biólogo, professor do ensino secundário, foi um dos mentores da criação de uma consciência ambiental numa região que virou costas a esses valores.

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