Jean-Christophe Cavallin: “No Alentejo, o apocalipse já está aqui”

O escritor francês faz o elogio de uma literatura que não vire as costas ao mundo natural, e de práticas culturais que permitam à população, “unida”, fazer frente ao “pânico que emerge do clima”.

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O escritor francês Jean-Christophe Cavallin veio a Portugal, no final de Setembro, para participar num colóquio na aldeia de Sabóia, em Odemira Rui Gaudêncio
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O escritor francês Jean-Christophe Cavallin visitou recentemente o Alentejo e ficou “ansioso” ao ver, durante o trajecto a partir de Lisboa, “pontes e mais pontes a atravessarem vales secos”. Deparou-se com o desacerto de uma paisagem que se preparou para uma massa de água que já não existe.

Ao chegar à aldeia de Sabóia, em Odemira, o autor de Valet Noir (2021) teve um encontro feliz com projectos culturais, como o Águas Gémeas, que convocam a população e o “imaginário de proximidade” com o objectivo de “encontrar rituais colectivos para sobreviver unidos a esse terror, porque existe uma ameaça real à sobrevivência deste território”.

Nesta conversa, Cavallin, responsável pelo mestrado de Ecopoética na Universidade de Aix-Marseille, em França, fala da importância de uma literatura que não prescinde do mundo natural que a rodeia, de um texto que não esquece o contexto. E explica como o medo, enquanto emoção primitiva, é fundamental para a relação humana com o ambiente.

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A barragem de Santa Clara, da qual depende o Perímetro de Rega do Mira, tem registado baixo níveis há alguns anos e motivado restrições do uso da água pelos agricultores Rui Gaudêncio

Esteve em Setembro na aldeia de Sabóia, em Odemira, por ocasião da Noite das Ideias, um evento com curadoria de António Guerreiro. O que reteve deste encontro no Alentejo?
O trabalho feito ali pela cooperativa Lavrar o Mar e pelo projecto Águas Gémeas, com Pedro Prista e a sua equipa de antropólogos. Eles praticam uma espécie de antropologia criativa que não é, de todo, um estudo antropológico convencional. O objectivo é reenriquecer um território que se encontra num contexto de grande seca, de escassez hídrica, procurando que a modernidade, as tradições, a arte e a economia funcionem.

O que aconteceu em Sabóia, e na barragem de Santa Clara, é exactamente o tipo de trabalho que tento fazer com os meus alunos [de mestrado em Ecopoética], só que pelo lado da literatura. Ou seja, aproximarmo-nos de tudo o que é das humanidades, das tradições culturais e literárias, das histórias tradicionais, deste tipo de construção imaginária e simbólica de um ambiente em que vivemos.

O trabalho de campo que estes jovens antropólogos fazem não é uma investigação no sentido formal, é uma colaboração com os habitantes para encontrar soluções para uma vida satisfatória no território, económica, moral e psicológica e culturalmente. É algo muito belo, na minha opinião.

Pensa que projectos numa escala modesta, e em parceria com a comunidade, podem funcionar melhor?
Usamos em França, por vezes, [a expressão] “histórias na escala um”. Ou seja, na escala um, o mapa é igual ao território. Sim, [a escala modesta] é, de facto, a mais importante para o tipo de reforma que a literatura deve sofrer, ou irá sofrer, gradualmente. É essa ideia de que a literatura, agora, não deveria ter a função de criar universos ficcionais, distantes da realidade, com a ilusão de distanciamento da vida que vivemos.

É como se, de repente, tudo nos livros fosse lindo e tudo na vida fosse feio. Tudo na vida se perdesse e tudo nos livros se salvasse. O que ambiciono é encontrar outra forma de reintegrar, reinscrever, reenraizar a imaginação dentro daquilo que chamo um imaginário de proximidade. Ou seja, a construção de lugares que habitamos. Foi o que tentei fazer no meu livro Valet Noir – Vers Une Écologie Du Récit (Corti, 2021).

Faz o elogio de uma determinada imaginação?
Sim, de um certo tipo de imaginação. Acho que tivemos uma enorme influência de Marguerite Duras na literatura francesa desde os anos 80 — é aquilo a que chamo Durassique Park, em vez de Jurassic Park. É aquela eterna palestra sobre a relação consigo mesma e com a escrita, uma forma de salvar a vida através da escrita, mantendo uma cegueira total para o mundo à volta, para o contexto em que se vive.

Acredito que, agora, estamos de facto a voltar às histórias em escala modesta, como referiu. Estamos a tentar fazer com que o texto funcione novamente no seu contexto. Ou seja, o texto como um sistema num ambiente — deixa de existir esse fechamento do texto sobre si mesmo. O texto deve esclarecer (e ser esclarecido por) o ambiente.

O texto deve ser um sistema?
Qualquer sistema requer um ambiente. O texto deve participar do ambiente do mesmo modo que um órgão integra um organismo. O órgão vive no organismo, possui uma especificidade, mas relaciona-se com o organismo. Na literatura francesa, tendemos a fazer o oposto: emancipar o texto do seu contexto, a ficar totalmente presos ao texto. E, como resultado, a nossa vida humana tendeu a libertar-se dos contextos, a esquecer completamente o ambiente. A humanidade construiu universos totalmente alheados da natureza, do mesmo modo que a literatura francesa está totalmente separada do referente e do contexto. É aquilo a que chamamos textualismo na literatura francesa, e que corresponde a anos de completo esquecimento ecológico.

A ecopoética vem reverter este esquecimento?
O que considero interessante na literatura ecopoética é que existem os dois eixos. Há o poético que advém do grego poiein, que significa fazer, construir. E há o eco, que é o ambiente. Então, se por um lado se constrói, por outro, vive-se nesse meio. Mas não devemos construir mundos para viver isolados do contexto; devemos construir mundos que nos permitam habitar aquele espaço. É uma dupla lógica paradoxal da literatura que deve, como qualquer organismo num sistema, abrir-se e fechar-se ao mesmo tempo.

A sua intervenção na Noite das Ideias fazia alusão à importância de "fazer os rios falarem". Pode comentar esta ideia?
É uma alusão ao pensamento do antropólogo francês Bruno Latour (1947-2022), que propôs aquilo que intitulou “um novo regime climático” — este é, de resto, o subtítulo do seu livro Face à Gaia (2015). Nesse novo regime, a cultura e a natureza misturam-se. Por exemplo: numa catástrofe dita natural, a natureza já não é a única responsável, os homens também o são. A humanidade toma decisões em nome da atmosfera, dos glaciares, dos ursos polares e da floresta amazónica — é preciso fazer com que os ursos e a Amazónia possam intervir, possam ter uma palavra a dizer nas cimeiras do clima. Latour tentou encontrar uma forma, através daquilo a que chamou “o parlamento das coisas”, de fazer com que os ursos e os glaciares pudessem entrar no hemiciclo. Isto do mesmo modo em que entre o Antigo e o Novo Regime, com a Revolução Francesa, o povo entrou no parlamento. Em resumo, este é o problema: como dar voz e direitos às entidades naturais.

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O filósofo francês Bruno Latour, pensador da questão ecológica, teorizou sobre como dar voz e direitos às entidades naturais BENOIT TESSIER/Reuters

E como podemos fazer falar os rios e os animais?
Para Bruno Latour, num primeiro momento, deveriam ser os cientistas a ajudar, uma vez que estes profissionais seriam os melhores tradutores da natureza. Eles seriam capazes de avaliar o estado de conservação e saúde das entidades naturais. Já no fim da vida, Latour começou a pensar que não seriam os cientistas, mas sim os nativos, os habitantes, os melhores a desempenhar esse papel. E é por isso que a experiência de Sabóia, [no Alentejo], me interessa.

Porquê?
Porque já não são os especialistas os melhores tradutores da natureza, segundo Latour, mas sim as pessoas que ali habitam. Os cursos fluviais pertencem-lhes porque elas consideram-nos sagrados. Donde, cabe a estes nativos fazer falar os rios. Esta entidade natural poderia tornar-se um sujeito, ganhar personalidade jurídica, pelas mãos dos guardiães, as pessoas que se batem pelos rios. Esta questão derradeira de Latour — o problema de quem detém a voz — interessa-me muito. Quem fala em nome do Alentejo? Para Latour, são as pessoas que ali habitam, e cujas vidas de misturam com a paisagem e os animais, porque deles dependem. São elas que devem falar, que devem escrever canções e histórias sobre isso, porque são habitadas, possuídas imaginariamente por essas coisas. Portanto, não é uma questão de ciência, de conhecimento enciclopédico ou de especialização, é uma questão de experiência.

Experiência que resulta da coabitação?
É mais do que a coabitação. É como se essas pessoas fossem feitas da mesma matéria que as entidades naturais. Se eu vivo perto de um curso fluvial, a minha vida tem a forma de um rio. Eu vejo a água pela manhã, pesco ali, sou um homem-rio. Se moro numa cordilheira, sou um homem-montanha. Quando Miguel Torga fala de Trás-os-Montes, ele é a montanha.

Há agora uma literatura que se debruça sobre o clima —​ há quem a chame ficção climática, ou cli-fi, em inglês —​, e que ambiciona sensibilizar leitores para a causa ambiental. Acredita que os seus livros possam ser também um instrumento de mudança?
É uma questão muito complicada, mas a resposta é muito simples: não. A literatura não pode salvar o planeta, nem é essa a sua função. A literatura não tem essa vocação. Pensar na literatura como algo que pode salvar o planeta é um comportamento moderno, no sentido em que atribui ao homem a capacidade de mudar o mundo. Quando já não conseguimos transformar o mundo através da indústria, será pela literatura ou por outra coisa qualquer. É um reflexo moderno. A literatura, na verdade, permite-nos aceitar aquilo que não podemos mudar. É a função do imaginário.

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Jean-Christophe Cavallin é professor de literatura na Universidade de Aix-Marseille, na França, onde coordena um mestrado dedicado à ecopoética Rui Gaudêncio

Pode explicar melhor?
Se observar a função da literatura nas suas primeiras grandes narrativas, ou seja, as narrativas mitológicas, veremos que tinham como função fazer com que os colectivos humanos aceitassem um mundo que não podiam mudar. Nas sociedades originárias, que ainda não haviam criado o seu próprio universo abundante e superindustrializado, há períodos de plenitude, de escassez, de privação. As grandes narrativas mitológicas têm a função, nos momentos de precariedade, de pedir ou rezar para que a abundância regresse. E daí as danças da chuva ou da caça. Existe um termo muito importante aqui: a precariedade.

Porque a precariedade importa?
Aquilo que é precário [do latim, precarius] é algo que se obtém através da oração. As primeiras narrativas ou formas de arte tinham sempre qualquer coisa de ritual, de culto. Agora, quando podemos contar com a indústria, a técnica, a superprodução, a exploração, quando quase não há precariedade, a literatura já não serve para estabelecer uma relação com algo que não é humano, como o ambiente ou os deuses. Portanto, a literatura só é útil para os homens. Ou seja, hoje a literatura poderia voltar a ter uma função em relação à natureza se nos encontrarmos numa situação em que já não possamos mudar as coisas. Mas acho que não é possível reparar o mundo através da literatura.

Perdemos a capacidade de sonho, do imaginário?
Sim, por uma razão muito simples: agora, temos uma tendência para isolar a actividade imaginária no domínio da ficção. Gostamos de ler literatura, mas dizemos a nós mesmos que aquilo é falso. Não é um sonho, porque um sonho precisa de funcionar em articulação com a realidade. Quando dizemos a nós mesmos que é falso, [o texto] não pode participar na nossa construção do mundo. Esse é o problema. Repare que há algo muito estranho: numa sociedade camponesa do século XIX, ou talvez mesmo no século XX, contam-se histórias aos filhos e acredita-se nessas histórias. São as histórias do lugar, dos poderes da floresta, etc. Hoje, quando contamos histórias aos nossos filhos, não acreditamos nelas. Há uma espécie de diferença entre o que dizemos às crianças e aquilo em que acreditamos.

Esta é a questão do sonho: já não acreditamos neles; eles já não participam na nossa construção da realidade. O que é importante nos sonhos é que eles são uma forma de continuar a comunicação que foi interrompida. Nós, agora, se não sonhamos, é porque podemos realmente mudar o mundo pela tecnologia, pela indústria. Donde, já não precisamos de sonhar muito.

Há um elemento central no seu livro: o medo. Qual é o papel dessa emoção na forma como falamos da crise climática?
Sobre o medo, podemos dizer uma coisa e o seu contrário. O medo antigo é aquilo a que chamamos pânico, uma palavra que remete ao deus Pã. É a divindade do mundo, [das florestas, dos campos e dos pastores]. O medo faz existir o mundo. Se passeamos no campo, ou se estamos sozinhos no meio do mar, podemos sentir num dado momento uma espécie de medo, um medo-pânico, que emerge da presença do mundo. Ou da ideia de que há algo à nossa volta que nos pode ameaçar. É um pouco a síndrome da presa isolada. Por isso, para mim, o aspecto central aqui é: o medo faz com que o mundo exista.

O medo faz-nos lembrar o ambiente que nos rodeia?
Sim, o medo permite que saiamos desse estado de esquecimento do mundo. Estamos dentro dos nossos telemóveis, não pensamos muito no que há à nossa volta. O medo, de repente, traz-nos de volta. No livro de [ensaio do escritor indiano] Amitav Ghosh, The Great Derangement, ele conta como um tornado fez com que recordasse não só a existência de um mundo natural, mas também quão pequena é a escala do homem. A filósofa australiana Val Plumwood [1939-2008] fala noutro texto de um encontro com um crocodilo que ela usou para obter carne. É sempre um traumatismo. A sociedade ocidental industrializada tem vivido numa espécie de segurança e conforto que advém, em parte, da certeza de ter afastado os predadores. Não temos qualquer tipo de medo em relação ao ambiente. E quando já não há medo, não prestamos atenção às coisas.

Estamos alheados, paralisados?
Sim, quando não há medo, esquecemos completamente o mundo. Além disso, notámos, por exemplo, que o homem e as vacas, e todos os animais domésticos, tiveram o mesmo declínio na atenção ao mundo. Perdemos muitos, muitos sinais que vêm do mundo. Já não ouvimos bem, já não lemos bem a paisagem, porque já não precisamos dela, porque não estamos à espera de um predador. E a mesma coisa acontece com vacas, ovelhas, etc. Eles pastam assim e não ouvem mais nada. Porque é o medo que nos liga ao mundo.

O medo está presente no jornalismo e em outros produtos culturais que se debruçam sobre a crise climática.
Há um modo de fazer medo que, de facto, se tornou virtual. Resta lidar com esta emoção através do jornalismo, do sensacionalismo, por exemplo. Se fizermos demasiado sensacionalismo, efeitos especiais de medo, cataclismo, colapso, então, é claro, isso terá, pelo contrário, um efeito catártico. Ou seja, cura o nosso medo.

O medo não deve ficar isolado nas manchetes sensacionalistas ou nas histórias apocalípticas. A ficção climática (o chamado cli-fi), com narrativas apocalípticas, não é muito inteligente nesse ponto. Porque faz-nos ter medo dos grandes apocalipses e evitar que pequenas coisas que vemos agora no mundo nos amedrontem. Por exemplo, no Alentejo, o apocalipse já está aqui. É um rio que deixou de existir. Não há necessidade de imaginar o colapso. O apocalipse está aqui. Temos é de ter medo do presente.

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Incêndio em Odemira durante o Verão de 2023, em que se registaram recordes de temperatura em Portugal e no planeta Luís Forra/EPA

Pode dar exemplos desse pequeno apocalipse no Alentejo?
É complicado.

Porque é um olhar estrangeiro?
O olhar estrangeiro também não é muito inteligente. Mas recordo que, chegando a Lisboa e seguindo para o Alentejo pela auto-estrada, passámos por quatro pontes, todas grandes, com 200 metros de comprimento. Havia sinais a dizer “ribeira alguma coisa”. Passámos pela primeira e não havia rio em baixo; a segunda, não havia rio em baixo; a terceira, não havia rio em baixo; a quarta, não havia rio em baixo. Fiquei ansioso. Pensei para mim mesmo: em França, temos todas aquelas pontes que foram construídas durante os grandes anos de superprodução industrial, dos anos 50 aos 80. E daqui a 20 anos? Construímos pontes, pontes, pontes e com isso, de facto, secamos, perturbamos o clima e agora já não há rios por baixo destas pontes. Fiquei com medo ao perceber isto.

São toponímias que perderam contexto.
Sim, é isso. O que acontece na paisagem é uma espécie de “violência lenta”. O problema das alterações climáticas é que muitas vezes não são catastróficas, ocorrem tão devagar que não percebemos. Mas quando chegamos a uma paisagem que não conhecíamos e vemos isto, há algo de realmente terrível. É muito impressionante quando vemos pontes e mais pontes que atravessam vales secos. E, por isso mesmo, é muito importante o trabalho que a cooperativa Lavrar o Mar e o projecto Águas Gémeas estão a fazer. Há ali uma aposta no envolvimento dos nossos idosos, das comunidades, dos jovens, dos bailarinos contemporâneos, etc. —​ todos juntos, eles deparam-se com esta espécie de escala da memória. O que mudou? O que está a mudar agora? É possível criar algo à volta disto para fazer existir o medo. Ou seja, a atenção ameaçada da qual falámos há pouco. E também para encontrar rituais colectivos para sobreviver unidos a esse terror, porque existe uma ameaça real à sobrevivência deste território. E este trabalho em comunidade é muito interessante. Há ali uma comunidade que tenta encontrar formas de dança, espectáculo e comportamento que têm em mente essa ameaça, esse pânico que emerge do clima e que tenta fazer com que o colectivo não seja aniquilado por essa mesma ameaça.