Para onde fugir quando o calor aperta? Aguarda-se que a resposta venha das autarquias

Partimos à procura de abrigos de calor financiados pelo Fundo Ambiental, mas os que encontramos não foram activados este ano. Do que precisamos, afinal, para nos proteger das ondas de calor?

Ondas de calor: que soluções existem para nos protegermos? Aline Flor, Tiago Bernardo Lopes

Em plena onda de calor, o jardim da Mealhada está praticamente vazio naquele início de tarde em que chegamos à cidade, já no final do Verão. Dois irmãos estão num dos bancos do espaço verde, à sombra, sentados ao lado de uma ventoinha (desligada). Dois jardineiros trabalham debaixo das árvores, abrigados do sol. Andamos um pouco, até que encontramos alguém que aceita responder à questão: há condições para as pessoas mais vulneráveis serem acolhidas em situações de calor extremo? Anabela Henriques, que por ali circula, não tem conhecimento de espaços com refrigeração para as pessoas mais idosas. “O que avisam é que as pessoas se resguardem em casa, em sítios de sombra, em zonas de água.” Enquanto falamos, os termómetros na farmácia tocam os 41ºC. “Não há ninguém na rua, não é? Mesmo eu tenho alguma dificuldade às vezes, imagino os mais idosos. Nestes dias tem sido mesmo impressionante. Mesmo à noite...”

Com os termómetros no vermelho – como se prevê para este início de Outubro –, o Azul tentou encontrar exemplos de abrigos de calor. Nas cidades, sendo já conhecido o problema da pobreza energética que faz com que por vezes esteja mais quente dentro de casa do que na rua, há alguns lugares públicos que podem servir de abrigo, como bibliotecas ou até igrejas. Mas haverá estruturas maiores para situações de emergência?

Começámos por pesquisar na Internet. Há cerca de cinco anos, alguns projectos da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (que inclui a Mealhada, no distrito de Aveiro) receberam apoios do Fundo Ambiental para vários projectos no âmbito da adaptação às alterações climática – foi deles que viemos à procura. Mas a busca levou-nos por outros caminhos.

Prevenir ou remediar?

A Comunidade Intermunicipal (CIM) da Região de Coimbra é a maior do país e também uma das mais heterogéneas: vai desde a faixa atlântica até ao centro de Portugal, no início do Parque Natural da Serra da Estrela, na fronteira com a Guarda. “São territórios muito expostos em termos de calor, susceptíveis ao impacto de ondas de calor e incêndios, e com um perfil demográfico onde esse impacto se faz notar muito”, descreve Jorge Brito, secretário executivo intermunicipal da CIM Região de Coimbra.

“Um território como a região de Coimbra é um laboratório vivo de tudo quanto são os fenómenos que afectam o nosso país”, resume o gestor. “Somos afectados por processos de cheias e inundações – a começar pelas cheias do Mondego –, incêndios florestais, episódios de neve e granizo, ondas de calor, ondas de frio, deslizamentos naturais.”

Além disso, “a seu tempo”, a CIM já tinha “identificado o impacto das ondas de calor como sendo uma perigosidade a estudar no território”, relata Jorge Brito. “Sabemos que os impactos destas ondas de calor se fazem sentir em estratos demográficos muito focados”, recorda. As populações mais idosas, crianças, pessoas com deficiência e com doenças crónicas são as mais afectadas.

Para preparar o território para as ondas de calor, é preciso actuar em duas dimensões: a montante, a nível da adaptação às alterações climáticas, de modo a tornar o território mais resiliente a um clima mais instável, e a jusante, na gestão de riscos naturais, nomeadamente na preparação para “lidar com os impactos neste território que já está exposto”. Para cada uma destas dimensões existe um plano intermunicipal. “Se há matérias que não olham fronteiras administrativas, são os processos de gestão de riscos naturais”, faz notar.

“Exercício experimental”

Pedimos-lhe que fale sobre os projectos que a CIM Região de Coimbra tem apoiado no âmbito das alterações climáticas. Durante a reportagem, encontramos algumas paragens de autocarro “sustentáveis” que fizeram parte de um projecto que envolveu 19 municípios da região – algumas com um aspecto um pouco abandonado, como a da Mealhada, outras com um ar mais degradado do que as paragens normais, como encontramos em Coimbra.

Paragem de autocarro “sustentável” em Coimbra Tiago Bernardo Lopes
Paragem de autocarro “sustentável” em Coimbra Tiago Bernardo Lopes
Paragem de autocarro “sustentável” em Coimbra Tiago Bernardo Lopes
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Paragem de autocarro “sustentável” em Coimbra Tiago Bernardo Lopes

“Esta iniciativa dos abrigos sustentáveis para passageiros surgiu ao abrigo de um projecto maior que se chamava ‘Demonstração e Inovação para Adaptação às Alterações Climáticas na Região de Coimbra’”, descreve Jorge Brito. Com fundos do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR), foi um projecto para testar várias abordagens à questão das alterações climáticas, incluindo outros subprojectos como a criação de zonas de sombreamento em áreas urbanas ou a plantação de árvores autóctones.

[Este] exercício experimental”, explica, “serviu como ensaio para algo que queremos replicar no território.” Também as paragens sustentáveis, acrescenta, estão nestes planos.

“Só plantando mais árvores”

Nos últimos anos, cada ano continua a trazer novos recordes. Cada novo Verão é agora “o Verão mais quente de sempre”. Anabela Henriques ainda se lembra de que, quando era miúda, “as estações calhavam no tempo certo”. “Nesta altura tínhamos calor, mas não era este calor como tem estado ultimamente.” Agora, vê o calor a chegar com mais intensidade e cada vez mais em alturas pouco propícias, com períodos de frio igualmente extemporâneos. “Está muito inconstante. Ao longo do tempo tornou-se muito intolerável.”

Também Tiago Machado, que encontramos a fazer horas à sombra das árvores antes de seguir para casa, já nota o facto de as temperaturas permanecerem altas durante mais tempo do que o habitual. “Sempre tivemos picos de calor, é normal aqui na região, mas era durante um dia ou dois. Nos últimos anos, temos notado que esses picos se prolongam às vezes por mais de uma semana.” E isso nota-se no dia-a-dia – mais precisamente, na hora de ir dormir. “A diferença é o facto de as temperaturas não baixarem o suficiente durante a noite e isso faz com que as casas não arrefeçam tão facilmente. Nota-se mais o calor por causa disso.”

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Tiago, 30 anos Tiago Bernardo Lopes

Com as casas muito quentes, a solução para refúgios mais frescos é, para muitos, procurar espaços verdes. “Temos o parque municipal da cidade, é um espaço muito bom, e costuma estar fresco lá. O ideal seria estarmos bem em casa, mas à falta de melhor conseguimos ir para o parque”, diz Tiago.

Antes de sairmos da Mealhada, trocamos ainda umas palavras com Pedro, de 28 anos, na sua pausa no trabalho, também à sombra de uma árvore. Não tem dúvidas: “Para combater aqui o calor, só se plantassem mais árvores.” Pedro vive mais perto do litoral, mas para si é claro que, “nos sítios do interior, o que faz cada vez mais sentido é haver florestas”. Não há-de ser tarefa fácil, tendo em conta a difícil gestão dos fogos florestais, mas “é o que cria uma temperatura mais amena... Não há qualquer solução possível a não ser uma solução natural”.

Fundo Ambiental

Em 2018, um dos municípios da CIM Região de Coimbra abrangidos pelos apoios do Fundo Ambiental para intervenções de adaptação às alterações climáticas foi Arganil, nomeadamente para a adaptação de dois pavilhões para acolherem populações mais vulneráveis durante períodos de calor extremo. Os projectos chegaram a ser concluídos, com o Pavilhão da Escola do 1.º Ciclo do Ensino Básico de Arganil e o Pavilhão Gimnodesportivo do Sarzedo equipados para acolher populações vulneráveis em períodos de calor ou de frio extremo.

Farmácia assinala 41 graus no município da Mealhada Tiago Bernardo Lopes
Tiago Bernardo Lopes
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Farmácia assinala 41 graus no município da Mealhada Tiago Bernardo Lopes

Num ano de recordes de temperatura, seria possível ver os abrigos de calor em acção? “Os equipamentos estão em funcionamento”, responde-nos o município. “Mas não foram activados este ano, por não se considerar necessário até ao momento.”

Quais têm sido, afinal, os resultados dos projectos e a estratégia actual do Fundo Ambiental na dimensão da adaptação às alterações climáticas? O Ministério do Ambiente e da Acção Climática põe o foco não nos abrigos de calor – sobre os quais pouco tem a dizer , mas nas chamadas “ilhas-sombra”.

O que são “ilhas-sombra”? “Um pulmão nas áreas urbanas”, que traga para as cidades “fontes de biodiversidade de corredores ecológicos”, descreve João Paulo Catarino, secretário de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território. Mais de 130 municípios responderam à chamada de projectos para um financiamento de até 75 mil euros de acordo com o governante, já foram aceites projectos no total de 9,4 milhões de euros.

Ainda no âmbito da adaptação do território para resistir a um clima mais hostil, há ainda 30 milhões de euros dedicados à criação de “paisagens biodiversas” arborizadas em mais de 400 mil hectares, num projecto que abrange as regiões norte e centro; para o centro e sul do país, o Fundo Ambiental destinou apoios para combater a desertificação dos solos, privilegiando árvores autóctones e promovendo acções para “aumentar a matéria orgânica no solo”.

Cidades a aquecer

É aqui que chegamos a uma parte importante da conversa: com a população cada vez mais concentrada em cidades pouco preparadas para o calor, é preciso pensar a longo prazo para solucionar problemas comuns em contexto urbano, como são o efeito de ilha de calor.

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Pessoas abrigam-se à sombra em Coimbra Tiago Bernardo Lopes

Este é um problema que afecta uma larga fatia da população, já que em Portugal a maioria das pessoas vive em contexto urbano: de acordo com o INE, em 2020, 73,4% da população portuguesa vive em áreas predominantemente urbanas (mais de 7,5 milhões de pessoas). “Precisamos de criar nestas cidades contextos amigos do ambiente”, sublinha o secretário de Estado João Paulo Catarino.

O governante reconhece que continua a existir uma pressão para a urbanização, mas é preciso que as câmaras garantam estas áreas verdes “nos seus planos de pormenor e planos de urbanização”. “Não se pode ficar refém dos privados que fazem essas urbanizações.” Por outro lado, “as próprias câmaras têm de adquirir terra para as destinar a estes pulmões que vão criando nas áreas urbanas”.

É fácil reconhecer os benefícios de um jardim ou parque para a qualidade de vida no dia-a-dia. Mas será fácil, na altura de defender um orçamento, justificar estes investimentos face a outras questões mais visíveis no dia-a-dia como a pobreza, a educação ou a saúde? “Hoje as cidades precisam de cada vez mais espaços verdes. A sociedade reclama isso aos seus autarcas”, observa João Paulo Catarino.

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