“São as ondas de calor que mais podem matar”

Eventos extremos serão mais frequentes e intensos em Portugal. O plano nacional prevê estratégias de “prevenção de ondas de calor”, mas para a associação Zero o que importa agora é tirar tais medidas do papel.

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Parisienses refrescam-se durante a onda de calor de 2019 Charles Platiau/Reuters

Quando uma criança tem febre alta, os cuidadores ficam em estado de alerta. Se o termómetro passar a barreira dos 41 graus Celsius, há o risco de convulsões. E, se exceder os 43 graus, há mesmo a possibilidade de morte, devido a danos estruturais nas proteínas que compõem os nossos órgãos. Do mesmo modo que, internamente, o corpo humano está preparado para operar apenas num dado intervalo térmico, o nosso organismo também apresenta limites na adaptação às temperaturas externas. Perante a ocorrência de ondas de calor – um evento climático extremo que deverá ser cada vez mais frequente no Sul da Europa –, os nossos corpos podem simplesmente colapsar ou falecer.

“Em Portugal, um dos piores impactos das alterações climáticas serão sem dúvida as ondas de calor. É o que mais vai afectar as pessoas em termos de mortalidade e morbilidade, sobretudo o grupo dos idosos”, afirma Francisco Ferreira, presidente da Zero e professor na área de ambiente na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Embora as vagas de frio também possam ter lugar (e efeitos letais) no país, são “as ondas de calor que mais podem matar”.

O relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) divulgado em Fevereiro mostra que Portugal está entre os países mais vulneráveis na União Europeia. É no Sul da Europa que as secas e as ondas de calor poderão ter uma expressão maior por razões meteorológicas, uma vez que esta região já apresenta temperaturas mais elevadas que o Norte do continente. No ano passado, por exemplo, a Grécia enfrentou a onda de calor mais grave no país nos últimos 30 anos. Os termómetros ultrapassaram os 46 graus Celsius, batendo o recorde da devastadora onda de calor de 1987, que provocou então a morte de 1300 pessoas.

O documento do IPCC sugere a criação de planos de acção que incorporem sistemas de alerta e resposta tanto para zonas urbanas como rurais, para que a população se possa adaptar da melhor forma possível ao calor extremo. Podemos ficar alertas, como os pais de um bebé ficariam em caso de febre, mas não existe um “paracetamol ambiental” que consiga reverter a temperatura e os sistemas do planeta para aquilo que eram nos tempos pré-industriais. Quando os termómetros indicam mais de 45 graus Celsius, não há muito a fazer além de ligar o ar condicionado ou adoptar estratégias como beber muita água e tomar banhos tépidos frequentes. E mesmo estas adaptações podem ser privilégios de algumas camadas da sociedade. “Há uma questão de iniquidade ligada à capacidade económica de cada um para se adaptar ou prevenir – desde a casa onde vive à alimentação que tem”, avalia o presidente da Zero.

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As alterações climáticas agravam situações de desigualdade: numa onda de calor, nem todos acesso a ar condicionado Manuel Roberto

Um relatório recente da Agência Europeia do Ambiente analisou as perdas humanas e os custos económicos de eventos climáticos extremos ocorridos no continente em 40 anos. Portugal ocupa o quinto lugar em termos de mortes prematuras numa lista de 32 países, tendo perdido 9267 vidas humanas em 40 anos devido a episódios associados ao clima.

Risco de incêndios

As ondas de calor, as mudanças na precipitação e outras mudanças associadas ao clima amplificam o risco de fogos mais frequentes e vastos. Por outras palavras, as alterações climáticas exacerbam os factores que criam as condições ideais para incêndios descomunais como o de 2017 em Pedrógão Grande, distrito de Leiria, que causou 66 mortes e 254 feridos. “A intensidade dos incêndios no nosso país tem aumentado, o que obviamente também afecta a qualidade do ar e põe em causa a saúde [respiratória] da população próxima”, recorda Susana Viegas, professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

Sabia que...

...Portugal ocupa o quinto lugar em termos de mortes prematuras numa lista de 32 países, tendo perdido 9267 vidas humanas em 40 anos devido a episódios associados ao clima?

Em Portugal, o Programa de Acção para a Adaptação às Alterações Climáticas (P-3AC) determina a “prevenção de ondas de calor” através de medidas como a criação de “infra-estruturas verdes”, de áreas com sombra ou climatizadas artificialmente e, por fim, de campanhas de comunicação que esclareçam para a população quais são as melhores medidas de prevenção e adaptação. O documento estabelece como deve ser aplicada a estratégia nacional desenhada em 2015, cuja validade foi prorrogada até 2025, mas para os ambientalistas há muitas recomendações no papel e pouca prática no terreno.

“O que nós sentimos é que quase tudo o que está nestes roteiros, sobretudo no que diz respeito à adaptação [às alterações climáticas], está ainda muito no papel. Já há vários concelhos que identificaram as áreas de risco, mas… Eu tenho um plano pronto para prevenir ondas de calor, algo mais sofisticado do que apenas um alerta? Não tenho. Tenho um conjunto de medidas para lidar com a seca e o uso eficiente da água? Não tenho”, critica Francisco Ferreira. Para o ambientalista, a actual seca é um bom exemplo da propensão portuguesa para “reagir em cima do momento”, sem ser capaz de “adaptar e antecipar”.

Na estratégia nacional que serve de base ao P-3AC, Portugal é identificado como um dos países europeus com maior vulnerabilidade. Estão mencionados impactos económicos associados à agricultura, energia, cheias, inundações, incêndios florestais, saúde humana, seca e zonas costeiras. Estão referenciadas projecções de aumento do número de mortes relacionadas com o calor e aumento das doenças associadas à poluição atmosférica e alergénios presentes no ar. Há ainda menção ao aumento da frequência e intensidade das ondas de calor, às alterações na distribuição e incidência de doenças transmitidas por vectores e alterações na disponibilidade e qualidade da água. A parte da saúde ocupa pouco mais do que meia folha num documento com 46 páginas. “O grande problema da estratégia nacional e, do consequente plano de acção, é realmente conseguirmos tirarmos tudo isso do papel”, conclui o presidente da Zero.