“Há uma epidemia de doenças mentais associadas ao clima”

Chama-se “solastalgia” ao desconforto emocional causado pelas mudanças no ambiente. Eventos extremos como secas e ondas de calor podem interferir com as nossas emoções e aumentar a ansiedade.

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O impacto que a crise climática pode ter nas emoções humanas é reconhecido num relatório do IPCC Paulo Pimenta

Existe uma palavra para nomear o desconforto emocional causado pelas mudanças no ambiente: “solastalgia”. O neologismo foi criado pelo filósofo ambiental Glenn Albrecht e serviu de título a um livro do autor australiano, publicado em 2005, que explora o sentimento de inquietude perante modificações negativas num ecossistema. Hoje o impacto que a crise climática pode ter nas emoções humanas é reconhecido, com um grau “muito alto de confiança”, no mais recente o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).

“Comportamentos e sistemas humanos vão ser perturbados pelas mudanças climáticas de diversas maneiras e as potenciais consequências para a saúde mental e o bem-estar são proporcionalmente diversas quer na quantidade quer na complexidade”, refere o documento do IPCC divulgado em Fevereiro de 2022. Eventos extremos que devem tornar-se mais frequentes com a crise do clima – tais como inundações, secas e furacões ­– não só têm impacto “directamente” na saúde mental e no bem-estar como também “aumentam a ansiedade”.

O médico Lachlan McIver, consultor dos Médicos Sem Fronteiras para a área da saúde planetária, trabalhou ao longo da carreira em várias comunidades isoladas, incluindo ilhas do Pacífico ameaçadas pelas alterações climáticas. McIver diz ter convivido com “inúmeras” pessoas cujas terras foram engolidas pelo mar, que enfrentam a mudança nos padrões de precipitação, perderam colheitas sucessivas, deixaram de ter pescas satisfatórias, foram obrigadas a migrar, cessaram de ter água e comida disponíveis, esgotaram a fonte de rendimento… Estas experiências não lhe deixaram qualquer dúvida sobre o impacto que estas mudanças têm na saúde mental de uma comunidade.

“Perdoem-me por soar um pouco dramático, mas está em curso no mundo uma grande epidemia, quase sempre silenciosa, de doenças mentais relacionadas com o clima. Há certas comunidades e zonas do planeta onde este fenómeno já é hoje particularmente problemático. É claro que, ao mesmo tempo, há outra parte da população global que não está a par ou não liga nada aos efeitos adversos da crise climática, incluindo os impactos na saúde física e mental. Mas acreditem que há também inúmeros indivíduos preocupados que, neste exacto momento, já estão a sofrer as consequências”, afirma o consultor dos Médicos Sem Fronteiras, que dedicou a tese de doutoramento às relações entre saúde e mudanças no clima.

Se, por um lado, é “claro e indubitável” o impacto que a crise climática tem na saúde, por outro, McIver sublinha que o fenómeno “não está quantificado” e ainda é “pouco compreendido”. Quando algo novo surge na vivência emocional de um grupo, nem sempre a linguagem acompanha a emergência desse novo estado de alma. O consultor dos Médicos sem Fronteiras explica que não estão imediatamente disponíveis as palavras para precisar o estado emocional de quem vê, lentamente, uma terra natal desaparecer. Um território é, quase sempre, um espaço físico e simbólico que persiste geração após geração. Perdê-lo para as águas, e para sempre, como está a acontecer em algumas ilhas do Pacífico onde McIver trabalhou, pode engendrar sentimentos que as comunidades ainda não sabem nomear.

“Como explicar aquilo que se sente para os familiares e amigos mais próximos? Como descrever o que faz sofrer ou causa angústia? É uma sensação de perda que nos obriga a pensar em novas palavras, como solastalgia, que é a perda de algo devido a uma mudança no ambiente. São novos conceitos que estão surgindo na psiquiatria (que não é a minha área) para tentar entender melhor esses problemas. Porque em muitas partes do mundo não temos linguagem para nomear [esta dor] nem temos recursos em termos de cuidados primários para lidar com esta e outras questões de saúde mental”, observa o consultor dos Médicos sem Fronteiras em Genebra.

Efeitos das ondas de calor

Portugal não tem as mesmas características que as ilhas do Pacífico. Os efeitos que se farão sentir na saúde mental da população poderão ter outros contornos, expressões diferentes. Mas é provável que outras alterações em curso na paisagem e nos sistemas humanos tenham repercussões nas nossas emoções. As ondas de calor, por exemplo, constituem um evento extremo que poderá ser cada vez mais frequente em Portugal e que influencia a forma como nos sentimos ou comportamos e a nossa disposição para trabalhar.

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É provável que secas severas impactem paisagens e sistemas humanos e tenham repercussões nas nossas emoções Rui Gaudêncio

O mais recente relatório do IPCC refere que “o calor extremo tem impactos negativos na saúde mental, bem-estar, satisfação com a vida, felicidade, desempenho cognitivo e agressão.” Estima-se que a crise climática aumente a ocorrência de episódios violentos através de mecanismos directos e indirectos. Existe, aliás, uma referência na literatura científica que prevê um aumento global de 6% na taxa de homicídios mediante o aumento de um grau Celsius no termómetro do planeta, ainda que este estudo encontre uma grande variabilidade entre os países.

Francisco Ferreira, presidente da associação Zero, usa a seca como um exemplo do que poderá afectar a saúde mental dos portugueses. “Não será um evento em si – como a seca que estamos a enfrentar este ano –, mas sim a recorrência destes eventos. Se eu tiver todo um conjunto de elementos fundamentais de uma sociedade que acabam por ser postos em causa pelas alterações climáticas, então isto acaba por ter um peso na saúde mental. Imaginemos que sou agricultor e vivo numa constante ansiedade de vir uma seca e estragar toda a produção. É algo sistemático e que não pode ser antecipado”, explica o ambientalista.

As próprias migrações climáticas podem quebrar vínculos, extinguir práticas sociais e esbater referências, gerando sentimentos de desconforto emocional. “Com a seca, pessoas que estão ligadas à agricultura podem vir para as grandes cidades. Pessoas que se dedicam a áreas de actividade afectadas pelo clima talvez tenham de as abandonar. As alterações climáticas podem levar a que essas migrações se intensifiquem novamente em Portugal. Isto vai obviamente sobrecarregar os serviços de saúde nas zonas urbanas”, alerta Susana Viegas, docente Universidade Nova de Lisboa.