Rafael Zenni: “Com o planeta a aquecer, as invasões biológicas serão mais intensas”

Com o alastrar da actividade humana às zonas mais remotas, nos trópicos e nos pólos sul e norte, as invasões biológicas estão a chegar a áreas até agora intocadas. São os próximos hotspots de invasão.

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Capim-algodão rodeado de Melinis minutiflora, uma das gramíneas africanas invasora no Brasil Oksana Bokhonok/Getty Images
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O cientista brasileiro Rafael Duqueque Zenni, da Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais, foi um dos autores responsáveis pelo capítulo 5 do relatório sobre as espécies invasoras no mundo, divulgado esta semana pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema (IPBES).

É a mais completa avaliação da situação mundial relativamente às invasões biológicas, que em 2019 tiveram custos de 423 milhares de milhões de dólares (390 milhares de milhões de euros). Para se ter uma dimensão deste valor, ele é praticamente duas vezes mais do que o PIB de Portugal em 2022, que chegou aos 239.000 milhões de euros.

Zenni foi um dos 86 especialistas de 49 países que colaboraram nesta avaliação. Investiga a ecologia de mudanças globais. “Trabalho sobre as ligações entre invasões biológicas, ecologia urbana e mudanças climáticas. É o efeito, por exemplo, da criação de novos pólos urbanos e como é que isso afecta a presença de espécies invasoras, e como afectam ou são afectadas pelas mudanças climáticas”, explicou ao Azul, numa videochamada, em que falou sobre os problemas das espécies invasoras apontados pelo relatório do IPBES.

Porque é que as espécies invasoras são um problema?
As espécies exóticas invasoras são reconhecidas como uma das cinco principais causas de perda de biodiversidade no mundo, juntamente com as mudanças climáticas, poluição, perda e fragmentação de habitat, e a extinção de espécies. Além de causarem grandes prejuízos ambientais, também são uma grande preocupação para a saúde humana e causam prejuízos económicos, tanto na produção agrícola quanto na produção industrial.

O que é que faz com que uma espécie exótica venha a ser classificada como invasora?
Geralmente são espécies que são levadas, de maneira intencional, ou acidental, para fora da sua área de ocorrência natural e, ao chegarem a esse novo local, conseguem estabelecer-se, proliferar e ocupar grandes áreas e gerar impactos para a biodiversidade nativa e os serviços do ecossistema. As espécies invasoras são introduzidas e saem do controlo, formam grandes populações numa grande área geográfica e, com isso, acabam trazendo prejuízos à biodiversidade e à saúde humana e à economia.

Como é que é possível gerir ou controlar este problema?
É necessário haver uma integração de várias acções, que envolvem políticas públicas, prevenção, monitorização, controlo e também a restauração e a reparação de ecossistemas invadidos.

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Rafael Zenni: "Hoje é maior a introdução de organismos menores, insectos, invertebrados em geral" DR

Há um leque muito grande de acções possíveis, desde legislação que regule e organize o processo de movimentação de espécies ao redor do mundo – tanto a vinda de um país para outro, quanto o uso económico dessas espécies, até acções de controlo e gestão das espécies exóticas invasoras, como reduções populacionais, controlo biológico – introdução de inimigos naturais.

O relatório do IPBES diz que 45% dos países não investem na gestão das invasões biológicas. Há uma falta de consciência deste problema ao nível dos decisores?
Grande parte dos países hoje possuem algum tipo de legislação que os obriga a fazer alguma coisa em relação às espécies invasoras. Tanto que muitos países são signatários da Convenção da Diversidade Biológica, que tem a meta de, lá para o fim da década, reduzir as introduções de espécies e mitigar os impactos das invasões já presentes.

Acontece que nas agendas ambientais dos países o tema das espécies invasoras nem sempre é tratado com prioridade. É muito comum ver iniciativas ocorrerem de forma isolada e sem uma coordenação central ou um trabalho em grande escala que faça com que tenham eficácia de longo prazo.

É necessário uma política de biossegurança a nível internacional, ou é algo que deve acontecer a nível nacional?
As duas coisas. Precisamos de uma acção coordenada internacional, porque é um problema que transcende fronteiras. A introdução da espécie não é só o destino final dela, mas é também o ponto de partida, de onde ela saiu. Isso transcende fronteiras e é necessário ter uma política de biossegurança global.

Mas também é preciso ter uma política de biossegurança nacional, porque, quando as espécies são introduzidas num país, as regulações sobre a movimentação ou libertação dos organismos ficam muito mais frouxas.

Acredita que estamos bem encaminhados para cumprir a Meta 6 do Acordo-Quadro de Biodiversidade Global Kunming Montreal, que prevê reduzir as taxas de introdução e estabelecimento de espécies invasoras em 50% até 2030?
Para 2030? Acho que não muito. É uma meta bastante ambiciosa e vê-se ainda pouca acção concreta, ainda há muito a ser feito. Os esforços precisam ser maiores e mais bem estruturados para que realmente se alcance algum resultado.

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Acácia a florescer: esta espécie de árvore é invasora em países de clima mediterrãnico, como Portugal, e contribui para os incêndios Thang Tat Nguyen/Getty Images

As espécies invasoras que causam maiores problemas hoje são introduções antigas ou mais recentes?
Acontecem as duas coisas, porque há uma característica muito frequente no processo de invasão biológica, que é a dependência do contexto. As espécies mais problemáticas não são as mesmas no mundo inteiro. Variam: as mais problemáticas em Portugal são diferentes das que são aqui no Brasil, porque cada ecossistema é diferente.

Uma das coisas que vão afectar muito um processo de invasão biológica é a quantidade de organismos introduzidos daquela espécie e o número de eventos de introdução. Se chegar em pequenas quantidades, pode ser que um processo de invasão leve muitas décadas para acontecer. Se forem centenas, milhares de indivíduos daquela espécie, a invasão pode acontecer muito mais rápido. Há espécies que estão a entrar há muito tempo e que causam pouco impacto e outras introduzidas recentemente que causam já grandes prejuízos.

De que forma é que as alterações climáticas podem interagir com as invasões biológicas?
É um processo sinérgico, com uma relação muito forte entre eles, porque as mudanças climáticas fazem com que os organismos acabem rearranjando as suas áreas de distribuição em função das suas adaptações ao meio onde vivem. Temos hoje um fenómeno de migração das espécies para latitudes maiores, em direcção ao norte ou ao sul, em função do aquecimento médio do planeta. Isso faz com que não só as espécies nativas expandam as suas áreas de ocupação, como também as espécies invasoras ocupem maiores áreas. Então, à medida que o clima do planeta aquece e os regimes de precipitação mudam, a expectativa é que as invasões biológicas se tornem ainda mais intensas.

E podem potenciar os efeitos de desastres relacionados com as alterações climáticas, como incêndios?
Há principalmente impactos de fogo relacionados com as invasões biológicas, porque há uma série de espécies exóticas invasoras que transformam os ecossistemas de forma a torná-los mais inflamáveis. Isso é comum em muitos países de clima mediterrânico, onde a invasão por acácias australianas [como em Portugal] faz com que os ecossistemas se tornem mais inflamáveis.

Aqui na América do Sul temos um exemplo muito interessante disso, que são as gramíneas africanas. A Melinis minutiflora, as braquiárias, o Arundo donax e algumas outras, que têm uma inflamabilidade maior, ardem a temperatura mais alta do que as gramíneas nativas da [região do] Cerrado. Com isso acabam fazendo com que o incêndio seja mais severo, mate o banco de sementes e impeça a regeneração natural.

E, tal como no caso das alterações climáticas, são as populações mais pobres, mais vulneráveis, que sofrem mais com o problema das espécies invasoras?
Sempre, não é? Um das grandes questões dos problemas ambientais é que precisamos de nos adaptar. Conseguimos até certa medida fazer mitigação, um pouco de prevenção, mas a adaptação exige recursos. E as sociedades mais vulneráveis socioeconomicamente acabam tendo uma menor capacidade de adaptação e por isso sofrem mais.

Há zonas do mundo onde a entrada de espécies invasoras esteja neste momento a avançar mais?
As espécies invasoras já estão presentes no mundo inteiro, só que os locais com menos actividades humanas costumavam ser mais protegidos de invasões. Por terem menos gente circulando, menos estradas, menos acesso, menos comércio. E hoje, com o aumento da actividade humana, principalmente as regiões de latitudes mais altas e regiões mais tropicais, acabam por ser os próximos hotspots de invasão, os locais onde se pode esperar o maior crescimento de novas invasões.

O relatório do IPBES menciona os territórios de populações indígenas...
É, essa é uma coisa extremamente importante desse relatório, em que tentamos de maneira bastante explícita incorporar o que sabemos sobre populações tradicionais e povos indígenas. Temos uma lacuna de conhecimento muito grande sobre essas áreas. Mas sabemos que muitas dessas áreas sofrem pressões com espécies invasoras. Existe uma necessidade muito grande de adaptação dos esforços de gestão para poderem incorporar as situações dos povos tradicionais, dos povos indígenas. É muito diferente fazer gestão de invasões numa área agrícola, numa unidade de conservação, numa cidade ou numa reserva. Ou numa área numa terra indígena. Existem outros valores culturais, outros valores sociais que precisam de ser incorporados, entendidos, antes de se fazer a gestão.

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Arundo donax, uma gramínia africana invasora em Portugal e no Brasil Margarita Vais/Getty Images

Especificamente na Amazónia, é grande o problema das espécies invasoras?
Não é grande no sentido de que existem vários lugares aqui na América do Sul onde o problema é maior. A questão é que é lá que mais está a crescer o número de novas introduções de [espécies invasoras], principalmente à medida que se ampliam as estradas, que se abrem novas fronteiras agrícolas, e aumenta o regime de incêndios e de queimadas. Vê-se a chegada de uma série de plantas invasoras que antes não ocorriam, e muitos animais também. Então não é onde hoje há mais espécies invasoras, talvez seja o contrário, é onde menos tem – só que é o local onde se vê o maior crescimento no número de invasoras.

Há algum padrão, hoje em dia – as espécies invasoras são mais plantas, microrganismos, animais ou é um pouco de tudo?
É um pouco de tudo. O único padrão que mudou é que, historicamente, as introduções costumavam ser intencionais. As pessoas realmente queriam levar as espécies de um lugar para outro. Hoje em dia, a maioria das novas introduções são acidentais. As espécies chegam associadas a algum outro vector, sem que exista a intenção deliberada de soltar novos organismos na natureza. As espécies invasoras vêm muito mais associadas ao comércio global, aos meios de transporte. Esse é um padrão real, bem forte.

E também é maior a introdução de organismos menores, insectos, invertebrados em geral. Fungos e bactérias são coisas que vemos com mais frequência. É mais raro ver grandes mamíferos serem introduzidos hoje em dia. Até porque a grande maioria dos mamíferos de interesse já foram introduzidos.

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