Oppenheimer: Colonos perderam as suas terras para a construção do laboratório de armas atómicas

O filme Oppenheimer, realizado por Christopher Nolan, incidiu luz sobre a relação conflituosa do Norte do Novo México com o laboratório secreto de armas atómicas.

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Visitantes observam as estátuas de Robert Oppenheimer, físico e antigo director do Laboratório de Los Alamos durante a Segunda Guerra Mundial, e do general Leslie Groves, em Los Alamos, Novo México (EUA) BRIAN SNYDER/Reuters

No filme Oppenheimer, a personagem homónima interpretada por Cillian Murphy diz que no local proposto para a construção de um laboratório secreto de armas atómicas no Norte do Novo México (EUA) apenas estava localizada uma escola para rapazes e uma comunidade de índios que realizavam rituais funerários. Porém, havia colonos a viver nessas terras.

Em 1942, o exército norte-americano deu a 32 famílias hispânicas do planalto de Pajarito (Novo México) 48 horas para abandonarem as suas casas e terras, nalguns casos sob a mira de uma arma, para construir o laboratório que viria a criar as primeiras bombas atómicas do mundo, de acordo com familiares dos desalojados e uma antiga funcionária do laboratório.

As casas foram demolidas, o gado abatido ou solto e as famílias receberam pouca ou nenhuma indemnização, de acordo com Loyda Martinez, de 67 anos, que trabalhou como cientista informática durante 32 anos no Laboratório Nacional de Los Alamos e cita relatos de famílias de agricultores e criadores de gado expulsos que são agora seus vizinhos na cidade de Española, também no Novo México.

Um porta-voz da Administração Nacional de Segurança Nuclear disse que os agricultores hispânicos foram indemnizados a uma taxa significativamente mais baixa do que os proprietários brancos, mas que a agência não tinha conhecimento de casas destruídas e animais mortos ou abandonados. A agência não respondeu se os proprietários foram removidos à força.

Loyda Martinez passou décadas a fazer campanha a favor dos colonos expulsos e dos direitos dos hispânicos, dos nativos, das mulheres e de outros trabalhadores do laboratório, tendo ganho duas acções judiciais colectivas relacionadas com a igualdade de remuneração e de tratamento para esses trabalhadores.

"Tratava-se de colonos hispano-americanos, o que talvez explique o facto de este episódio negro da história americana ser tão ignorado", afirmou.

Um laboratório com mais de 14 mil funcionários

O filme Oppenheimer, que está a ser um êxito de bilheteira, realizado por Christopher Nolan, incidiu luz sobre a relação conflituosa do Norte do Novo México com "o laboratório", que tem actualmente mais de 14.000 funcionários e é o maior empregador da região.

Para muitos hispânicos locais — descendentes de colonos espanhóis —, os seus elevados salários que receberam no laboratório pagaram casas, educação superior e uma oportunidade de se agarrarem a terras multigeracionais nesta zona rica em terras e pobre em dinheiro.

Marcel Torres, cuja família vive na zona de Penasco (Novo México) desde 1700, trabalhou nos sectores mais secretos do laboratório durante 35 anos como maquinista, ajudando a construir armas nucleares — para, segundo ele, "tentar evitar uma guerra mundial".

"Éramos tão valiosos para eles que não se importavam com a nossa etnia", explicou Torres, de 78 anos, que disse ter ganho cerca de três vezes mais no laboratório do que teria ganho noutro emprego na região.

Um legado de morte e desapropriação

Para outros, o laboratório carrega um legado de morte e desapropriação.

Loyda Martinez fez pressão junto do Congresso dos EUA para obter indemnizações para trabalhadores como o seu pai, um funcionário do laboratório que morreu depois de trabalhar com o elemento químico tóxico berílio. Em 2000, o Congresso norte-americano reconheceu que a radiação e outras toxinas tinham contribuído para a morte ou doença de milhares de trabalhadores do sector das armas nucleares.

O Departamento do Trabalho dos Estados Unidos criou um fundo de compensação para os afectados, mas demorou anos até que as famílias recebessem a indemnização, segundo Martinez, que fez parte da Comissão Estadual de Direitos Humanos do Novo México no início da década de 2000.

Myrriah Gomez, professora assistente na Universidade do Novo México, disse que os seus bisavós foram expulsos do seu rancho de 63 acres (cerca de 25 hectares) devido à construção do laboratório e que o seu avô morreu de cancro do cólon depois de ter trabalhado no Projecto Manhattan (um programa de investigação e desenvolvimento que produziu as primeiras bombas atómicas durante a Segunda Guerra Mundial).

"Oppenheimer não hesitava em deslocar pessoas das suas terras", disse Myrriah Gomez, que escreveu o livro Nuclear Nuevo Mexico sobre a criação do laboratório.

A escritora e jornalista Alisa Valdes, que escreveu um argumento sobre Loyda Martinez, disse que as cenas do filme Oppenheimer filmadas perto de Abiquiu, no Novo México, que retratam o laboratório numa paisagem vazia, ecoam a afirmação do governo dos EUA de que a área era desabitada. Os agentes publicitários do filme não responderam imediatamente a um pedido de comentário.

O laboratório foi construído em terras sagradas para o povo Tewa, que foram concedidas a colonos hispânicos sob o domínio colonial espanhol e, mais tarde, atribuídas a colonos hispânicos e brancos depois de os Estados Unidos terem ocupado a área no seguimento da guerra Mexicano-Americana de 1846-1848.

"A atribuição de terras a Los Alamos não foi uma aberração, era o que os Estados Unidos estavam a fazer desde 1848", afirmou o historiador do estado norte-americano do Novo México Rob Martinez, cujo tio-avô trabalhou no laboratório.

Em 2004, as famílias de colonos ganharam um fundo de indemnização de dez milhões de dólares do governo dos EUA.

Actualmente, o condado de Los Alamos, onde está sediado o laboratório, é um dos mais ricos e mais instruídos dos Estados Unidos. O condado vizinho de Rio Arriba, que é 91% hispânico e nativo-americano, está entre os mais pobres do país, com os resultados académicos mais baixos.

"Não há desenvolvimento económico nas nossas áreas porque tudo se concentra em Los Alamos", disse Cristian Madrid-Estrada, director do abrigo regional para os sem-abrigo em Española, a maior cidade de Rio Arriba.

O laboratório garantiu que mais de 61% dos funcionários contratados desde 2018 são habitantes do Novo México, com a maioria da sua força de trabalho a viver fora do condado de Los Alamos. "Estamos dedicados ao sucesso desta região que todos chamamos de lar", disse um porta-voz em comunicado.

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