Quando as forças de elite carregavam armas nucleares às costas

A missão quase impossível de um grupo de militares americanos durante a Guerra Fria.

Foto

O capitão Tom Davis está de pé no avião de transporte militar, por onde entra o ar da noite. Os seus olhos analisam o campo escuro, 360 metros abaixo dos seus pés. Aperta a lona do seu pára-quedas de reserva e respira fundo.

Davis e os homens que formam a equipa A das Forças Especiais estão entre os soldados mais bem treinados do Exército americano. Estamos em 1972 e Davis veio há pouco tempo de uma missão no Vietname, perto da fronteira com o Camboja. O seu sargento de comunicações serviu no Comando e Controlo Norte, responsável por algumas das operações mais audazes no coração do território norte-vietnamita. Mas nenhum dos seus homens esteve alguma vez numa missão deste género. O seu plano: cair na Europa de Leste, entrar pela floresta sem serem detectados e destruir uma fábrica de água pesada utilizada para fabricar armamento nuclear.

Nos preparativos para a operação, que durou quatro dias, os especialistas militares regionais explicam-lhes as vias de infiltração e as localizações das patrulhas do inimigo. A equipa analisou fotografias aéreas e uma reprodução elaborada do seu alvo — um enorme edifício ligeiramente em forma de U. Está situado numa zona ampla e aberta com uma vigilância dispersa, mas pelo menos a equipa não terá de entrar lá dentro. Pendurado no gancho do pára-quedas do sargento dos serviços secretos está uma bomba nuclear de 26 quilos. Com uma arma desta potência, podem simplesmente colocá-la junto a uma parede, activar os temporizadores e deixar que a fissão faça o que tem a fazer.

Davis tinha planeado seguir as pisadas dos conceituados juristas da família — o seu pai era advogado, o avô um juiz do tribunal federal — até ao dia em que, quando estava no primeiro ano de Direito, chegou um anúncio de recrutamento. Concorreu à escola de oficiais e voluntariou-se para as Forças Especiais. O Curso de Qualificação era exigente, mas saiu de lá como segundo-tenente. Dali, foi aprender a língua vietnamita e seguiu para a guerra no Sudeste asiático, onde serviu como oficial de operações para questões civis/psicológicas.

Foto
O capitão Tom Davis, responsável pela equipa escolhida para a missão DR

Quando se tornou primeiro-tenente, Davis ficou a comandar a sua própria equipa — a equipa A. O sargento do grupo sugeriu que se oferecessem como voluntários para o que Exército chamava Munições Atómicas Especiais de Demolição — armas nucleares tácticas, criadas para serem usadas no terreno, num eventual confronto com os soviéticos. “Que se dane, porque não?”, respondeu Davis. O comandante da companhia apresentou os nomes e a equipa foi aceite para treino.

Quando o avião se aproxima da zona de salto, as ordens surgem rapidamente, lançadas sob um vento gelado e ensurdecedor. “Verificar o cabo!” Os homens analisam o equipamento do princípio ao fim. “Aguardem!” As luzes ficam verdes e cada um toma o seu lugar. “Saltar!” Cada soldado transporta qualquer coisa como 31 quilos de equipamento para além dos 13 quilos de pára-quedas, por isso não é tanto um salto que fazem do avião, mas um andar à pato até à extremidade para se deixarem cair a uma velocidade de seis metros por segundo.

Com intervalos de meio segundo, as suas silhuetas emergem da parte de trás do avião e os seus pára-quedas abrem-se como rastos de cometas. Os velames expandem-se no ar e os homens descem a grande velocidade, suficientemente depressa para não serem detectados (ou abatidos), mas também suficientemente lentos para não morrerem quando embaterem no chão. Uma vez em terra, libertam-se dos pára-quedas e escondem-nos. Depois, reúnem-se num ponto previamente combinado escondido entre as árvores, onde retiram a protecção da cápsula da bomba e analisam o seu conteúdo para verificar que não está danificado e que a carga está intacta e sem fugas de radiação. Em seguida, colocam a bomba numa mochila, enterram o invólucro e partem pela floresta, movimentando-se apenas de noite para não serem vistos.

Demoram cerca de dois dias a chegar ao alvo. No dia D, colocam o engenho na fábrica. E fogem.

Sinais de humor negro

A missão do capitão Davis era, evidentemente, um exercício. Na realidade, ele e os seus homens não caíram de pára-quedas na Europa de Leste, mas perto da Floresta Nacional White Mountain, no New Hampshire. A fábrica de água pesada era na verdade uma fábrica de papel já fechada na cidade de Lincoln e a bomba era apenas um brinquedo de treino.

A missão não era verdadeira. Mas o trabalho sim.

Durante 25 anos, na segunda metade da Guerra Fria, os Estados Unidos prepararam realmente bombas nucleares transportadas por homens — a Munição Atómica Especial de Demolição B54 (Special Atomic Demolition Munition, ou SADM). Soldados das unidades de elite de Engenharia e das Forças Especiais, bem como SEAL da Marinha e alguns marines foram treinados para usar as bombas, conhecidas como “mochilas nucleares”, em frentes de combate que iam da Europa de Leste à Coreia, passando pelo Irão. Isto fazia parte do plano do Exército americano de garantir a contenção e, se necessário, a derrota das forças comunistas.

Ao longo do confronto com a União Soviética, o Ocidente teve de lidar com o facto de, em termos de número de homens e de armamento convencional, as forças do Pacto de Varsóvia ultrapassarem os rivais da NATO. Para os Estados Unidos, as armas nucleares eram o grande garante de equilíbrio. Durante a década de 1950, o Presidente Dwight Eisenhower deu um passo à frente, com o “New Look”, a ameaça de que uma agressão soviética poderia desencadear como resposta um ataque nuclear de proporções apocalípticas, uma doutrina conhecida como “retaliação maciça”. Desta forma, Eisenhower pensou que poderia conter o comunismo no exterior e manter o complexo industrial-militar do país.

Mas a estratégia tinha uma grande falha. Apesar de uma retaliação maciça ser mais económica, não permitia aos EUA praticamente nenhuma flexibilidade na resposta à agressão inimiga. Na eventualidade de as forças comunistas lançarem um ataque limitado não nuclear, o Presidente teria de escolher entre a derrota às mãos de uma força convencional superior ou uma retaliação estratégica nuclear altamente desproporcionada (e potencialmente suicida) que mataria centenas de milhões de pessoas.

Para haver opções entre “a linha vermelha” e a “morte”, os EUA desenvolveram o conceito de guerra nuclear limitada, com armas atómicas tácticas desenvolvidas para serem usadas em combate. Se as forças do Pacto de Varsóvia saíssem da Alemanha de Leste e da Checoslováquia em direcção à Europa Ocidental, os EUA poderiam recorrer a armas nucleares para pelo menos deter o avanço até que chegassem reforços. Estas “pequenas” armas, algumas delas mais poderosas do que a bomba que caiu em Hiroxima, teriam arrasado com qualquer campo de batalha e extravasado para as áreas circundantes. Mas constituíam uma opção.

A estratégia de Guerra Fria estava cheia de oxímoros como “guerra nuclear limitada”, mas a “mochila nuclear” era talvez a maior manifestação de humor negro de uma época em que se lidava com a perspectiva demasiado real de um Armagedão. As bombas SADM eram o exemplo da vida a imitar a sátira. Tal como Slim Pickens no icónico final do Dr. Estranho Amor, os soldados americanos estariam agarrados a bombas atómicas e a saltar de aviões durante o acto de abertura da III Guerra Mundial.

As décadas de 1950 e 60 foram a idade de ouro das armas nucleares. Cientistas e técnicos dos laboratórios de armamento nuclear de Los Alamos e de Sandia conseguiram fazer miniaturas dos chamados “módulos explosivos” do núcleo das bombas atómicas a partir dos mamutes de 4,5 toneladas usados no primeiro teste nuclear, transformando-os em ogivas mais pequenas que cabiam na ponta de um míssil. E os seus colegas dos foguetões desenvolveram mísseis balísticos lançados a partir do solo ou de submarinos que, juntamente com as bombas, cedo formariam a “tríade nuclear” que apoiava a estratégia de dissuasão contra os soviéticos.

Para o Exército americano, havia um problema: os bombardeiros e os mísseis eram geridos pela Força Aérea e a Marinha, deixando a força terrestre excluída do desenvolvimento mais significativo na história marcial, ainda que coubesse aos seus soldados impedir que as forças soviéticas invadissem a Europa Ocidental. Felizmente para o Exército, muitos estrategas americanos ainda encaravam as armas nucleares simplesmente como bombas convencionais de maior potência. E o domínio da América pós-Hiroxima no campo da ciência de destruição atómica deixou os inventores de armamento a pensar no que seria ainda possível fazer e não na prudência que seria necessário ter. O resultado foi uma série de estranhas criações que chegaram ao arsenal do Exército, desde artilharia atómica a mísseis aéreos com extremidades nucleares.

O Exército começou a desenvolver as munições atómicas de demolição (ADM na sigla inglesa) em 1954. As primeiras versões eram pesadas, com centenas de quilos, e eram precisos vários homens para as transportar, com ajuda de camiões ou helicópteros. Eram dirigidas para aquilo que se poderia chamar “intervenção paisagística nuclear” — para criar crateras impossíveis de transpor ou para derrocar montanhas que iriam obstruir rotas e bloquear forças inimigas. Um engenheiro lembra-se de montar uma ADM no meio de uma floresta: “A ideia era fazer explodir aquelas árvores ao longo do vale para criar um obstáculo físico radioactivo e impedir a passagem de veículos e soldados”, disse. O manual de campo do Exército ensina os soldados a usar as ADM para, através de pequenas explosões próximas de cursos de água, “formar diques temporários, criar um lago, causar uma enchente e produzir um eficaz obstáculo aquático” para as forças inimigas.

Caso acontecesse o pior, o plano dos engenheiros atómicos do Exército era destruir pontes, túneis e diques para impedir que as forças avançadas utilizassem infra-estruturas de apoio. Caminhos-de-ferro, centrais energéticas, aeroportos — tudo seria alvo de um ataque nuclear preventivo.

Armas atómicas tácticas

Mas o Exército também queria um papel mais pró-activo. Defendia que a doutrina da retaliação maciça deixava os EUA mal preparados para o espectro total de um conflito. Documentos da Comissão de Energia Atómica (AEC) mostram que os investigadores de armas nucleares apoiavam com agrado o desejo do Exército de ter armas atómicas tácticas. Em 1957, de acordo com uma história da AEC, o presidente da Sandia Corporation, James McRae, lamentava que “o uso indiscriminado de armas nucleares de grande porte criou inevitavelmente uma opinião pública adversa”. Já que o futuro da guerra estava numa “sucessão interminável de escaramuças e não em conflitos de larga escala”, McRae recomendava que fosse dada “maior ênfase a pequenas bombas atómicas”, que pudessem ser usadas em “combates localizados”.

Os pedidos de McRae abriram caminho ao desenvolvimento do Davy Crockett, um foguetão nuclear capaz de provocar uma explosão abaixo das mil toneladas e que caberia na mala de um jipe. Em 1958, quando o Exército pediu uma munição atómica de demolição que pudesse ser transportada por um único soldado, o AEC olhou para a levíssima ogiva Mark 54 do foguetão Crockett à procura da solução. A arma que daí resultaria seria uma versão mais pequena e mais móvel de uma ADM. Mas o Exército teria de a partilhar com a Marinha e os Marines.

O produto final da AEC — a Munição Atómica de Demolição Especial B-54 (SADM) — entrou no arsenal americano em 1964. Media 45 centímetros e vinha dentro de uma cápsula de alumínio e de fibra de vidro. Uma das pontas tinha a forma de bala, na outra havia um painel de controlo com 30 centímetros de diâmetro. De acordo com o manual do Exército, a sua explosão libertaria a energia equivalente a mil toneladas de TNT. Para proteger a bomba de uma utilização não autorizada, o painel de controlo da SADM estava selado com uma placa com código. O cadeado tinha uma tinta que brilhava no escuro para que os soldados pudessem abri-lo durante a noite.

À medida que as forças soviéticas avançassem sobre países como a Alemanha Ocidental, a SADM permitiria às unidades das Forças Especiais (chamadas de Equipas Luz Verde) destruir infra-estruturas e material do lado inimigo.

Mas a sua missão não se limitava aos países da NATO. O que muitos historiadores nucleares não sabem é que as equipas Luz Verde das Forças Especiais estavam também preparadas para usar as SADM em território do próprio Pacto de Varsóvia de forma a evitar uma invasão. As equipas prepararam-se para destruir campos aéreos inimigos, armazéns de tanques, radares antiaéreos e qualquer infra-estrutura que pudesse ser útil de forma a mitigar o fluxo de armamento inimigo e a permitir à força aérea aliada avançar. De acordo com um relatório interno, o Exército chegou a considerar enterrar algumas SADM próximo de bunkers inimigos, para “destruir comandos críticos no terreno e instalações de comunicações”.

Foto
O Exército começou a desenvolver as munições atómicas de demolição (ADM na sigla inglesa) em 1954. As primeiras versões eram pesadas, com centenas de quilos DR

Os SEAL da Marinha e as Forças Especiais do Exército foram treinados para atingir os seus alvos por ar, terra e mar. Eram capazes de se lançar de pára-quedas no lado do inimigo a partir de aviões de transporte ou helicópteros. (A AEC construiu uma cápsula pressurizada que permitia a mergulhadores colocar a bomba a 60 metros de profundidade.) Uma equipa das Forças Especiais chegou mesmo a treinar transportar a arma por esqui pelos Alpes da Baviera, embora com dificuldades. “Ela deslizava pela montanha. Nós não”, disse Bill Flavin, que comandou a equipa SADM das Forças Especiais. “Se se desviasse um bocadinho, era o fim. Nos declives, ficávamos fora de controlo com aquilo.”

As Forças Especiais viraram-se então para equipas treinadas em saltos de pára-quedas de grande altitude e para mergulhadores. Os líderes das equipas podiam decidir quais dos seus homens receberiam treino sobre a arma, de forma a garantir que a sua unidade conseguiria passar nas exigentes inspecções periódicas de segurança nuclear feitas pelo Exército. “As pessoas com as melhores pontuações, com mais experiência, geralmente acabavam na equipa da SADM por terem passado a inspecção de segurança”, continua Flavin. Para receber a qualificação SADM, os soldados tinham ainda de passar pela análise do programa de fiabilidade pessoal do Departamento de Defesa para garantir que eram dignos de confiança e mentalmente equilibrados.

Alguns dos homens abordados para a missão eram dedicados, outros nem por isso.

“Claro que todos se voluntariavam. Esse não era o problema”, comenta o capitão Davis. “Fazíamo-lo porque era uma excitação. Era uma coisa organizada e eu queria aprender.” Mas quando Ken Richter, membro da equipa Luz Verde, começou a entrevistar potenciais candidatos, nem todos estavam assim tão entusiasmados, diz. “Entrevistei muita gente para a nossa equipa. Quando descobriam qual era a missão, diziam: ‘Não, obrigado. Prefiro voltar para o Vietname’.”

Quando lhe mostraram a arma, Richard mal podia acreditar no que a AEC tinha inventado. “Acho que a minha primeira reacção foi de incredulidade”, afirma. “Porque tudo o que tinha visto antes disso, na II Guerra Mundial, eram armas com um aspecto igual. E nós íamos pô-la às costas e carregar com ela? Achei que eles estavam a gozar.”

Não estavam. As equipas SADM das Forças Especiais, como a de Davis, receberam um curso de uma semana composto por 8 a 12 horas de instrução diária, numa sala de aula em betão no Forte Benning, na Georgia. As equipas recebiam ainda treinos de reciclagem periódicos dados pelo comité das SADM das Forças Especiais, composto por oficiais seniores, e eram alvo de inspecções regulares para avaliar a sua destreza no manuseamento das armas nucleares. Mas, tendo em conta o que estava em jogo, o treino nem sempre inspirava muita confiança.

Uma arma pouco prática

Para arma nuclear, a bomba era compacta e leve, mas, como equipamento de infantaria, era ainda pesada e pouco prática, e batia com frequência nas costas do seu transportador. “Quando o [mestre de salto] disse ‘vai!’, quase me atiraram do avião com aquilo”, recorda Danny Powers, sargento de comunicações da equipa SADM.

Quando se transportava a arma a pé, as coisas eram ainda mais complicadas. Dan Dawson, um engenheiro ADM, lembra-se de como era duro correr com a bomba nuclear às costas. Durante um exercício de treino, a sua unidade simulou uma missão que consistia em mandar pelos ares um túnel ferroviário, mas concluiu que era difícil levar a SADM para uma zona de campo aberto. “Para levar [a SADM às costas] para o outro lado da zona aberta, com rapidez, dois de nós, um em cada lado, teríamos de dar apoio [àquele que carregava a bomba] por debaixo dos braços e atravessar a zona aberta com ele. Conseguia-se transportá-la, mas não se conseguia correr com ela.”

Para além disso, a regra dos dois homens, que dita que nenhum membro tem a capacidade de armar uma arma nuclear individualmente, exigia que as equipas Luz Verde dividissem o código para abrir a placa. Isso poderia ser um desafio no caso de o homem errado ser morto a caminho do alvo. “Ali estávamos nós com aquela merda no saco e sem um bom sítio para onde ir”, diz Flavin. “E por isso dissemos: ‘Ei, não podemos deixar que isso aconteça.” Os seus homens decidiram partilhar o código para o caso de haver alguma missão real.

Se uma missão corresse mal, os homens não poderiam simplesmente deixar a SADM para trás. O poder único da arma significava que esta não poderia em caso algum ir parar às mãos inimigas, e as placas de segurança, que eram fechadas com um único código, não garantiam grande protecção caso a equipa SADM fosse capturada. “Um pé-de-cabra era suficiente para a abrir”, diz Flavin. Por isso, as equipas foram treinadas para destruir a arma. “Tínhamos sempre de levar uma quantidade suficiente de explosivos para a destruirmos sem a espoletarmos”, explica Powers. “Poderia provocar lixo nuclear, mas não subiria como uma verdadeira nuvem-cogumelo.”

Se a equipa atingisse o alvo, os homens retirariam o invólucro com a placa de segurança e punham os temporizadores a funcionar. De seguida, a partir do pequeno compartimento do canto superior esquerdo do painel de controlo, faziam sair a carga explosiva do tamanho de uma mão, usada para desencadear a reacção nuclear em cadeia. Depois de armar a carga explosiva e virar o interruptor, batiam em retirada.

Claro que, nas horas e minutos antes da detonação, a bomba poderia ser descoberta e tomada pelas forças inimigas. Por isso, algumas equipas das Forças Especiais receberam instruções para não desviar os olhos da arma até poucos minutos antes de ser detonada. A distância “conveniente” para garantir tanto a segurança da arma como da equipa variava segundo o inspector de segurança nuclear, recorda Frank Antenori, que foi técnico de manutenção de armamento nuclear do Exército ao serviço de uma equipa das Forças Especiais, antes de receber condecorações por mérito como Boina Verde no Iraque e no Afeganistão. Alguns inspectores disseram às equipas para abandonar a área assim que a arma estivesse no local, outros insistiam que a equipa deveria manter a arma no seu campo visual até ela explodir.

Mesmo a uma distância “segura”, as equipas SADM estariam sempre desconfortavelmente próximas da detonação. “Estamos fora do alcance da vaporização”, afirma Antenori, “mas bem dentro do alcance do ‘maravilhoso vento quente que soprará quando for detonada dentro de um segundo’”.

Para aumentar o absurdo de permanecer intencionalmente perto de uma arma nuclear prestes a explodir, dava-se o facto de os homens não conseguirem saber exactamente quando ela ia explodir. Talvez para a tornar resistente aos impulsos electromagnéticos de quaisquer outras explosões nucleares próximas, o que seria de esperar no caso de um confronto com a União Soviética, a AEC tinha deixado a SADM sem componente electrónica. Em vez disso, o dispositivo contava com dois temporizadores que, infelizmente, se tornavam menos precisos à medida que aumentava a distância temporal para que eram marcados, podendo mesmo ser disparados oito minutos antes de tempo ou atrasarem-se 13. Os manuais de campo do Exército avisavam que “não era possível assegurar que [os engenhos] disparariam a uma hora precisa”, por isso as equipas SADM eram treinadas para prever a janela de tempo em que a arma iria deflagrar.

Mesmo assim, diz Powers, “sempre achámos que iríamos seguir meticulosamente os procedimentos com este dispositivo, acertar o temporizador para várias horas, de forma a conseguirmos sair, mas que na verdade quando carregássemos no botão iríamos todos pelos ares”.

Ainda que as equipas Luz Verde tivessem a sorte de continuar vivas depois de detonada a arma, as hipóteses de sobrevivência não estavam a seu favor. Atrás das linhas inimigas e cortados de qualquer apoio no início da III Guerra Mundial, teriam de confiar na sua habilidade e no treino de fuga para evitarem ser capturados ou mortos. Tomaram-se algumas providências: as Forças Especiais encarregues da detonação de uma SADM poderiam procurar as armas e reforços que estavam escondidos na Europa de Leste, assinalados em mapas especiais. “Quando o muro [de Berlim] ruiu, tirámos algumas dessas munições de lá”, lembra Flavin. “Fiquei surpreendido; as armas e tudo o resto ainda estavam boas para ser usadas.”

A ajuda de "O Urso"

Para além das munições, algumas equipas de SADM tinham acesso a outra arma secreta para as ajudar a regressar a casa: um sargento das Forças Especiais nascido na Checoslováquia chamado Julius Reinitzer. Quando era adolescente, Reinitzer conseguiu fugir duas vezes de um campo de trabalho nazi na Polónia. Mais tarde, juntou-se aos serviços secretos militares dos EUA, atravessando a fronteira para a Checoslováquia comunista para montar redes de resistência. Foi preso por espionagem pela Checoslováquia, mas voltou a fugir. De volta à liberdade, Reinitzer alistou-se no Exército americano, recebeu a cidadania americana e tornou-se Boina Verde. “O Urso”, como era conhecido, acabou por se tornar um tutor das equipas das Forças Especiais, incluindo da de Flavin e dos seus homens, que procuravam lições sobre a delicada arte de viver em fuga no outro lado da Cortina de Ferro.

Ainda assim, o mundo das Forças Especiais tinha a noção de que as missões Luz Verde eram muito provavelmente viagens sem regresso. Voar através do espaço aéreo inimigo, operar abertamente no outro lado da linha, penetrar em forças hostis com uma arma nuclear e esperar a uma distância desconfortável pela explosão da bomba — as missões tinham uma grande dose de irracionalidade. Ou como diz Flavin: “Havia dúvidas sobre a sensatez do programa, e os que estavam encarregues de dirigir a missão tinham a certeza de que faltou discernimento a quem a projectou.”

Foto
Julius Reinitzer, sargento das Forças Especiais nascido na Checoslováquia DR

O humor fazia ultrapassar as duras realidades de trabalhar com munições atómicas de demolição. O engenheiro das unidades ADM criou emblemas e logótipos decorados com nuvens-cogumelo. Havia um lema não oficial entre eles: “Dêem-lhes com nuclear até ficarem incandescentes e abatam-nos no meio da escuridão.” A piada era facilitada pelo facto de alguns deles pensarem que as hipóteses de toda a cadeia de comando autorizar a missão eram reduzidas. “No nosso íntimo, sabíamos que ninguém daria o controlo disto a um bando de rapazes crescidos a correr pelo campo”, diz Davis. “Simplesmente, não acreditávamos que alguma vez pudesse acontecer.”

À parte da “sensatez operacional” do programa, como descreve Flavin, alguns dos membros das Forças Especiais questionavam se o seu avião de transporte, para não falar da arma, alguma vez os deixaria no meio do caos e destruição no arranque da III Guerra Mundial. Raramente, se é que alguma vez, as unidades SADM tiveram acesso às armas reais, que estavam armazenadas sob apertada vigilância em depósitos, como as instalações do Exército em Miesau, na Alemanha Ocidental. No caso de guerra, as armas seriam retiradas dos armazéns para bases aéreas próximas onde as Forças Especiais SADM esperariam por elas. Flavin soma os desafios: “Então era preciso que nos levassem para um local. Teríamos de esperar pela arma noutro local qualquer. E teríamos de apanhar o avião ainda noutro sítio. E tudo isto tinha de ser feito quando? Supostamente, antes que o outro lado soubesse que iríamos atacar, acho eu.”

A sensibilidade política era também um obstáculo. Os aliados da NATO, particularmente a Alemanha Ocidental, estavam compreensivelmente apreensivos com a ideia de forças americanas transportarem um monte de pequenas armas nucleares através do seu território. Era suposto os técnicos só usarem as armas depois de as populações locais terem sido retiradas, mas os requerimentos não chegavam para acalmar os nervos. Enterrar as armas debaixo do solo ajudaria a limitar uma fuga de radioactividade, mas a República Federal resistiu publicamente quando os EUA pediram autorização para pré-escavar orifícios para colocar as armas nucleares perto de infra-estruturas de transporte.

No final, nenhuma das dúvidas sobre a SADM chegou a ser esclarecida. Em 1984, 20 anos depois da criação da arma, ficou-se a saber alguma coisa sobre a bomba e as suas capacidades quando William Arkin e os seus colegas desenharam uma descrição da SADM a partir de documentos e manuais do Natural Resources Defense Council. As suas revelações provocaram alguma ira no Congresso e chocaram os media, mas a arma já tinha então os dias contados.

À medida que as tensões da Guerra Fria se esbatiam, os EUA começaram a recolher as SADM para o seu território continental. A arma foi oficialmente retirada em 1989, com os departamentos da Defesa e Energia a declará-la “obsoleta” e a sustentar que “já não havia uma necessidade operacional” que a justificasse. Com a queda da União Soviética em 1991, George H. Bush fez cortes profundos no armamento nuclear não estratégico em todos os serviços.

Seis anos depois, alguns pormenores sobre a arma foram oficialmente desclassificados. Mas os detalhes operacionais de como os Estados Unidos tencionavam usar as “mochilas nucleares” — incluindo as missões no território do Pacto de Varsóvia, as exigências que se impunham aos homens que as transportariam e os riscos que as missões comportavam — só agora são conhecidas, através de entrevistas, documentos desclassificados pelos pedidos ao abrigo da Freedom Information Act e manuais militares obtidos recentemente.

Aquilo que antes fora uma arma ultra-secreta é agora uma atracção turística. Hoje, os visitantes do Museu Nacional de Ciência e História Nuclear, em Albuquerque (Novo México), podem tirar uma fotografia em frente ao pára-quedas onde se transportava a SADM. A Munição Atómica Especial de Demolição deixou de ser uma arma mortalmente perigosa, e até excêntrica, para se tornar um produto kitsch da Guerra Fria.

À luz da distância histórica, é tentador reduzir a SADM a uma aberração nascida na histeria da Guerra Fria. Mas os Estados Unidos continuam a manter armas nucleares tácticas na Europa, ainda que na forma da menos aventurosa bomba B61, lançada a partir do ar. O que é mais assustador é que outros países estão a adquiri-las cada vez mais como instrumentos de defesa nacional. O Paquistão, por exemplo, manterá armas nucleares a postos e tem a pré-autorização para o seu uso nas mãos de soldados no terreno — é uma forma de compensar o facto de a Índia ter um Exército muito mais numeroso. Num sinal de que o jogo virou, agora que a Rússia está numa posição de inferioridade face à NATO no que diz respeito às forças convencionais, Moscovo aumentou o papel das armas nucleares tácticas na sua doutrina estratégica.

Mas, para os veteranos da SADM, o seu passado nuclear está já muito distante. Alguns tinham dúvidas quanto à missão; outros aceitaram-na. Independentemente disso, todos carregaram o peso dos piores pesadelos da Guerra Fria — às costas.

 

Foto

David Brown é autor de Deep State: Inside the Government Secret Industry
Exclusivo PÚBLICO/Foreign Policy/ Washington Post     

Sugerir correcção
Comentar