Se lerem este texto, dou-vos um ovo Kinder

Não é com orgulho que admito que para comandar a minha orquestra, nem com 7 braços. A minha autoridade está pelas ruas da amargura.

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"O ensinamento budista, a moral da história, o silêncio para lidar com as emoções, muitas vezes não se conjugam com a hora de entrada na escola" Unsplash/Markus Spiske
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Confesso que sou uma mãe que exerce chantagem e corrupção. Sou dependente destas estratégias. Diria até que não sei como é que é possível educar sem usar essas técnicas. Ouço falar das velhas lendas dos pais que, em silêncio e apenas com o olhar, conseguem que os filhos entendam tudo e obedeçam. Uma sabedoria ancestral telepática de águias que, só com um ligeiro assobiar, conseguem que as crias as sigam em fila, sem questionar. Pais que se gabam de os filhos comerem até à última colher de sopa num jantar de grupo, sem terem de proferir uma palavra. Lembra-me um vídeo que vi do maestro Bernstein a comandar a sua orquestra, apenas com o levantar de sobrancelhas e com os movimentos da boca, sem usar os braços.

Não é com orgulho que admito que para comandar a minha orquestra, nem com 7 braços. A minha autoridade está pelas ruas da amargura. No que toca às minhas filhas, sou aquela professora primária desesperada, sem mão na turma, que chegou ao terceiro período arrependida de não ter imposto ordem logo na primeira aula.

Sou uma espécie de Walter White nos primeiros episódios de Breaking Bad. Dócil, subserviente, resignada. A pessoa a quem facilmente se passa por cima, cuja palavra não tem poder. Tendo chegado a este estado aparentemente irreversível, vejo duas hipóteses: ou me torno o Walter White dos episódios seguintes, e aí tenho a certeza de que a minha autoridade passa a ser respeitada, ou, na falta de vontade de me tornar uma brutamontes e de começar a fabricar metanfetaminas, continuar como sou, e servir-me da chantagem.

Eu sei que a chantagem é uma das práticas mais condenáveis que existem. E é fortemente condenada, não só pelos terapeutas, psicólogos infantis, educadores de infância, como, logo à partida, pelo dicionário, que a define como “ato ou prática imoral ou criminosa”. Além de condenável, convenhamos, é muito irritante: “Se não forem já para o banho, não vão ver nenhum filme a seguir.” “Se não comerem a sopa toda, não há sobremesa.” “Se não pararem com isso, não andam de baloiço.”

As exigências que quero ver cumpridas são, muitas vezes, para benefício próprio, seja sobre a forma de silêncio, seja para não ter de limpar massa de farinha com aguarela cor-de-rosa de almofadas, seja para evitar olhares alheios quando estão deitadas no chão de um restaurante. Mas, na maioria das vezes, são para benefício das chantageadas: para saírem do meio da estrada, para aceitarem pôr um gancho para que o cabelo não vá para os olhos, para tomarem um remédio, para descansarem, etc.

A corrupção é igualmente (e bem) julgada e condenável. É “uma forma de desonestidade ou crime praticado por uma pessoa ou organização a quem é confiada uma posição de autoridade, a fim de obter benefícios ilícitos ou abuso de poder para ganho pessoal.” Mas a verdade é que, com crianças, pode salvar. Já perdi a conta aos gelados que prometi para voltarem a pôr os cintos de segurança no carro. Um suborno com sabor a morango, em troca de segurança rodoviária.

Tenho tanta vergonha de fazer isto que, se estou em público, sussurro, como alguém que vai corromper outra pessoa num parque de estacionamento: “Se parares com isso, dou-te um ovo kinder.”

Também pratico tráfico de influência e sirvo-me da posição privilegiada de certos tios, e dos avós, para obter benefícios, especialmente em momentos de birra. Em casos extremos também faço uso da apropriação indébita, ou seja, de coisa alheia móvel sem o consentimento do proprietário, se a coisa alheia móvel for um apito estridente ou ainda qualquer Nenuco que esteja a ser violentamente disputado pelas duas. “Não é assim que se educa”, ouço dizer. “A chantagem não leva a lado nenhum”; “O suborno cria mimadas manipuladoras.”; “Nada pode ser pior”.

Dizem que é uma solução imediata que gera um problema a longo prazo. E eu até admito que sim. Mas, por vezes, é necessária uma solução imediata. Há momentos em que todas as soluções compassivas, que exigem horas para lidar com um problema, não servem. O ensinamento budista, a moral da história, o silêncio para lidar com as emoções, muitas vezes não se conjugam com a hora de entrada na escola, com a azáfama das tarefas, com o cansaço.

Porque é que eu faço isto, perguntam vocês? Porque funciona. E às vezes uma mãe só precisa disso.

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