Prove que não é um robô

Nunca estivemos tão sozinhos como na era das redes sociais. Nunca estivemos tão vazios como na era do conteúdo. Nunca estivemos tão desatentos como na era da informação na mão.

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Sede da Facebook em Menlo Park, Califórnia, EUA Reuters/CARLOS BARRIA
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Fazer conteúdo para pôr no grande recipiente que são as redes. A urgência do conteúdo que preencha cada vez mais todo e qualquer vazio. Andamos a chamar conteúdo à ausência total de conteúdo. Conteúdo em doses de microssegundos, conteúdo o tempo todo, em todo o lado, ao mesmo tempo, até que a mente humana fique completamente esvaziada de conteúdo.

O cérebro habitua-se a movimentos repetitivos. Qualquer que seja o movimento, quanto mais vezes é feito, mais o cérebro se adapta e melhor se torna a efectuá-lo. O polegar a fazer deslizar. Ver conteúdo. Produzir conteúdo. Uma produção de conteúdo em massa. De conteúdo sem conteúdo. Somos fábricas ambulantes de conteúdo. De conteúdo para encher o quê? O feed. Feed significa alimentar. O feed quer ser alimentado de conteúdo. Um cão faminto de conteúdo. Uma Hidra de infinitas cabeças a exigir conteúdo. O feed é infinito. O feed nunca acaba. Tem sempre fome, exige mais de nós.

Não é surpresa para ninguém que as redes, que supostamente chegaram para andar ao nosso serviço, nos puseram ao seu serviço. Ao serviço das suas exigências cada vez maiores, cada vez menos disfarçadas, cada vez mais embrutecedoras. Ao serviço das tendências, das novas funcionalidades, dos novos formatos.

O Facebook, que há muito ameaça desaparecer e converter-se num cemitério de tias-avós e de gifs de gatos, mas que resiste, talvez pelo carácter resistente e intemporal tanto das tias-avós como dos gifs de gatos, sempre fez as suas exigências. Uma delas: “Em que estás a pensar?” Exige saber o que vai na nossa cabeça, até que tudo dela seja esvaziado, e que nada reste a não ser repetições infinitas. Até sermos gifs humanos que perderam todo o seu conteúdo. Até todos sermos produtores de conteúdo totalmente esvaziados.

Recentemente, uma exigência disfarçada que o Facebook me impôs: “Conclui estas acções para melhorar Madalena Sá Fernandes.” A promessa é melhorar. Mas, antes, algumas acções. As acções são despejar mais de mim.

Qualquer que seja o post que eu faça no Facebook, há dezenas de comentários que dizem “parabéns e muito sucesso”; “sucesso”. Os desejos de sucesso surgem instantaneamente, quer eu esteja a divulgar uma data de algum evento, uma crónica, uma fotografia. Sucesso começa a ser desejado de forma automática, digitado pelos dedos sexagenários dos utilizadores do Facebook. Muitos nem lêem o que está escrito; sedentos que estão por manifestar o seu desejo de sucesso. Acho tão estranho a quantidade de mensagens exactamente iguais, com pequenas variações, a felicitar-me e a desejar sucesso, que me questiono se não serão robôs a escrevê-las. A diferença seria nula. Constato que são humanos.

O feed nivela tudo. Um poke, uma dança, uma guerra. Tudo surge no mesmo plano. Sabe-se que os níveis de empatia estão a desaparecer, e os de apatia a aumentar. Uma bebida ao pôr-do-sol e uma catástrofe a deslizar no mesmo ecrã, a entrar na nossa mente com segundos de diferença, a destruir a noção de prioridade e de hierarquia moral. No TikTok, a mesma coisa, apenas um algoritmo mais apurado que só mostra o que se vê, uma pescadinha de rabo na boca.

Nunca estivemos tão sozinhos como na era das redes sociais. Nunca estivemos tão vazios como na era do conteúdo. Nunca estivemos tão desatentos como na era da informação na mão. Nunca tivemos tão pouca auto-estima como na era da selfie.

Antes de entrar em alguns sites, aparece a famosa mensagem: “Prove que não é um robô.” Esta é a grande prova do momento. Provar que não somos robôs. Provar que não somos apenas um exército de produtores de conteúdo. Provar que não vivemos para alimentar o feed, para inserir os mesmos comentários até ao infinito, para contabilizar os likes, para reagir às notificações. Provar que temos empatia, que sabemos estar presentes, que não estamos viciados, que não estamos programados, que conseguimos decidir.

Está a ficar cada vez mais difícil provar que não somos robôs.

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