Os advogados merecem mais respeito

Entre não se tocar em nada ou mudar tudo de alto a baixo, tem de haver uma solução que assegure melhor a necessidade de “refrescamento” dos mecanismos de controlo.

Ouça este artigo
--:--
--:--

“O exercício da advocacia em Portugal não tem merecido da parte dos poderes públicos a atenção e o interesse que por todos os motivos deviam ser dispensados a uma tão nobre e elevada profissão.” Estas palavras são do preâmbulo do Decreto 11715, de 12 de Junho de 1926, que criou a Ordem dos Advogados (OA). A quase 100 anos de distância, assentam bem à ministra da Justiça. A proposta de revisão do estatuto da OA e da lei dos actos próprios da advocacia foi enviada para a OA no dia 7, às 23h, para dar parecer, a correr, até ao dia 13, com fim-de-semana e feriado pelo meio, para depois ser aprovada, à pressa, no dia 15, sem qualquer alteração. Uma audição assim, para cumprir calendário, não é séria.

Já aqui escrevi e mantenho que a criação de mecanismos de controlo externo do exercício da profissão não pode ser vista pelos advogados como um tabu. “Não se pode querer o melhor de dois mundos, reivindicando, num pé, o exercício de prerrogativas públicas e rejeitando, no outro, o controlo externo necessário para mitigar os ímpetos corporativos de qualquer organização profissional” (“Regulação pública da advocacia”, 5/10/2022). Porém, tenho igualmente como certo que esse “arejamento” democrático, à semelhança do que sucede com os conselhos superiores das magistraturas, não pode ser asfixiante, ao ponto de desvirtuar a natureza autónoma da OA e o exercício livre e independente da advocacia, nem pode servir de pretexto para secundarizar o papel dos advogados na administração da Justiça.

Há um grave erro de base na proposta aprovada em Conselho de Ministros. Ela inspirou-se nas sugestões de um relatório da Autoridade da Concorrência, que trata por igual todas as ordens profissionais como entidades reguladoras da prestação de serviços, com foco exclusivo nos objectivos da economia e do mercado. Chega mesmo a dizer, pasme-se, que “a existência de um estágio constitui uma barreira à concorrência”. Como se a promoção da qualificação técnica e deontológica da advocacia fossem aspectos supérfluos da profissão.

Ora, nem a advocacia é um mero serviço económico, nem a OA é igual às demais ordens profissionais. A Constituição atribui à advocacia uma função de interesse público, sem paralelo nas outras profissões liberais, como elemento essencial na administração da Justiça (artigo 208.º), que é uma das áreas de soberania do Estado (202.º n.º 1). Com todo o respeito, médicos, engenheiros e contabilistas prestam serviços muito importantes, mas não são coadjuvantes das funções de soberania, como os dos advogados.

Para além disso, o diploma aprovado pelo Governo é altamente contraditório. Ao mesmo tempo que cria na OA um órgão de supervisão independente, composto maioritariamente por não advogados, para garantir a prossecução do interesse público e a não subordinação aos interesses de classe dos advogados; atribui a pessoas e entidades externas a competência para a prática de actos típicos da advocacia, como a consulta jurídica, a elaboração de contratos e a negociação da cobrança de créditos, sem um efectivo controlo deontológico e disciplinar, determinando apenas que ficam voluntariamente sujeitas aos deveres de imparcialidade e sigilo e que se devem organizar para prevenir e combater os conflitos de interesses e designar um licenciado em Direito para as supervisionar.

Quer dizer, para o Governo, a regulação da advocacia, pela OA, é corporativa e precisa de supervisão externa; mas para se acabar com esse mal, desregula-se a prestação de serviços e entrega-se a pessoas e entidades que se vão vigiar a si próprias. Está-se mesmo a ver como isto pode acabar. O resultado é muito grave, porque os serviços que estão em causa são essenciais para a tutela jurisdicional dos direitos e para a protecção das garantias fundamentais, que devem ser assegurados por advogados qualificados e independentes, devidamente regulados por entidades públicas e critérios de interesse público e não por terceiros, subordinados sabe-se lá a quem ou a quê, não sujeitos às mesmas obrigações estatutárias nem ao mesmo controlo deontológico e disciplinar. Alguém vai ganhar com isto, mas não são certamente os cidadãos nem as empresas.

Compreendo, portanto, a indignação dos advogados e a necessidade de a OA desenvolver medidas de protesto para que alguém a ouça. Espero que o Parlamento seja mais sensível às suas objecções. Entre não se tocar em nada ou mudar tudo de alto a baixo, tem de haver uma solução que assegure melhor a necessidade de “refrescamento” dos mecanismos de controlo, sem pôr em causa os alicerces de uma função essencial para a administração da Justiça.

Sugerir correcção
Ler 12 comentários