Da Avenida da Liberdade às minas de lítio em Boticas, os alertas da ONU a Portugal

Qualidade do ar, gestão de resíduos, protecção da biodiversidade, o fim das “zonas de sacrifício”. Leia as oito principais recomendações do relator especial da ONU para direitos humanos e ambiente.

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Caixas com amostras do solo de Covas do Barroso, local da futura mina de lítio, retiradas pela empresa inglesa Savannah Lithium Adriano Miranda

Portugal tem estado na linha da frente em termos do empenho do Governo na acção climática, mas ainda há muito caminho a percorrer para traduzir esse entusiasmo em mudanças que melhorem, de facto, a vida das pessoas. Esta é uma das principais conclusões do relator especial das Nações Unidas sobre direitos humanos e ambiente, David R. Boyd, no relatório elaborado depois da visita a Portugal em Setembro do ano passado.

O documento sobre Portugal, publicado em Janeiro, foi um dos relatórios apresentados a 9 de Março, durante a 52.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, num “diálogo interactivo” com o relator especial com foco nas obrigações de direitos humanos relativas ao usufruto de um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável.

A começar, um ponto positivo: Portugal e a Eslovénia (outro país cujo relatório foi apresentado na sessão) estiveram entre os primeiros países do mundo visitados pelo enviado especial da ONU para os direitos humanos e o clima e isto aconteceu por estarem, precisamente, entre os primeiros países do mundo a incluir o direito a um ambiente saudável na sua constituição.

Na sua apresentação, David R. Boyd começou por explicar que Portugal está a sofrer consequências devastadoras da seca, assim como o perigo anual decorrente dos incêndios. O país tem feito uma aposta certeira nas energias renováveis e na redução de combustíveis fósseis, com o encerramento de duas centrais de produção de energia eléctrica a carvão.

Esta transição bem-sucedida tem sido suportada por uma “legislação robusta”, sublinhando-se ainda o acesso (quase) universal a água potável e a criação do Fundo Ambiental. Nem tudo é um mar de rosas, com três áreas principais onde Portugal pode fazer muito melhor: o controlo da qualidade do ar, a gestão de resíduos e uma verdadeira implementação da tal “legislação robusta” em matéria de acção climática e protecção da biodiversidade.

O embaixador Rui Macieira, representante permanente de Portugal junto das Nações Unidas e outras organizações internacionais em Genebra, fez uma breve intervenção na qual reconheceu que existem vários pontos de potencial melhoria, dando destaque às “questões de qualidade do ar, agricultura e gestão de resíduos”.

Mas não foram apenas estes os puxões de orelhas que o relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos e ambiente deu a Portugal.

Zonas de sacrifício

É preciso “identificar e restaurar quaisquer zonas de sacrifício” áreas de poluição intensa ou degradação ambiental “onde os lucros e interesses privados tenham tido prioridade em detrimento dos direitos humanos e do ambiente, prevenindo também a criação de futuras zonas de sacrifício”. Esta é uma chamada de atenção geral, mas tem em conta um caso específico: a futura exploração de lítio da empresa Savannah Lithium numa mina a céu aberto na aldeia de Covas do Barroso (Boticas), uma região classificada como Património Agrícola Mundial pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Apesar da grande necessidade deste mineral para levar a cabo a transição ecológica em curso na Europa e no mundo, “grandes projectos de extracção de recursos que possam violar os direitos humanos em nome da transição verde são contrários ao desenvolvimento sustentável, tal como têm concluído vários tribunais e comissões nacionais e regionais”.

Estas “zonas de sacrifício”, lê-se no relatório, são “completamente incompatíveis com o direito humano a um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado”, consagrado no artigo 66.º da Constituição Portuguesa, e com o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável, de acordo com a resolução 76/300 da Assembleia das Nações Unidas.

“Portugal merece crédito por liderar o mundo no reconhecimento do direito a um ambiente saudável, por acabar com o uso de carvão e acelerar a produção de energia renovável e por rejeitar na lei o desenvolvimento offshore de petróleo e gás em todo o país, incluindo perto do Algarve”, considerou David R. Boyd. “Seria difícil conciliar esse historial de liderança com a aprovação de uma enorme mina a céu aberto numa comunidade que é um exemplo globalmente reconhecido de desenvolvimento sustentável.”

Áreas protegidas e biodiversidade

O relator especial recorda que o Governo deve “proteger e restaurar” ecossistemas saudáveis e biodiversidade, assegurando recursos suficientes, regulação forte e planos de gestão para gerir de forma eficaz e equitativa as actividades humanas em áreas protegidas.

É preciso também acelerar a transposição das directivas de conservação da natureza da União Europeia, incluindo a Directiva das Aves e a Directiva Habitats, assim como as acções para designar formalmente novas áreas marinhas protegidas, em linha com os compromissos assumidos na Convenção sobre Diversidade Biológica e em consulta com as comunidades locais, de forma a garantir que os seus direitos são respeitados.

Há ainda uma chamada de atenção sobre justiça climática: é necessário “acelerar medidas para reduzir o risco de incêndios florestais e proteger as populações vulneráveis, incluindo idosos, crianças e pessoas com deficiência”.

Qualidade do ar

É preciso ir mais longe para melhorar a qualidade do ar, tendo como referência as orientações mais recentes da OMS para fortalecer os padrões de qualidade do ar e cumprindo efectivamente o direito de respirar ar puro.

O relator especial insta o Governo a reduzir as emissões dos veículos a motor – “em particular em focos de poluição como a Avenida da Liberdade, em Lisboa” (onde as grávidas têm maior risco de ter bebés com peso abaixo do normal) – e subsidiar a substituição de fontes de aquecimento a lenha, carvão ou outros combustíveis por bombas eléctricas de calor, “priorizando os segmentos mais pobres da população”.

Gestão de resíduos e economia circular

A gestão eficiente de resíduos continua a ser um desafio para Portugal, tanto a nível de gestão municipal – apenas 29% dos resíduos municipais são reciclados ou compostados –, como da segurança no que toca a substâncias tóxicas.

É preciso, por um lado, acelerar a separação de resíduos alimentares e materiais orgânicos “para uso em compostagem e digestores anaeróbios, o que poderia reduzir as emissões de metano, aumentar a quantidade de composto para venda como fertilizante e fornecer uma valiosa fonte de biogás”.

Também a reciclagem tem de ser incentivada, parte de uma efectiva economia circular: é preciso, por exemplo, responsabilizar os produtores no contexto da gestão de resíduos sólidos, para que os produtores de papel, plástico, embalagens, baterias, pneus e outros materiais se tornem responsáveis pelo financiamento e a gestão de um programa eficaz de reciclagem, reduzindo assim os custos do governo e caminhando para uma economia circular.

Apoio à agricultura e ao sistema alimentar

Uma transição ecológica implica também mudanças no sistema alimentar, promovendo-se alimentos saudáveis e produzidos de forma sustentável. Isto passa, no caso português, por “promover a transição das monoculturas industriais para sistemas agroecológicos, orgânicos, regenerativos e outros sistemas alimentares ecologicamente e culturalmente superiores” e, claro, por “salvaguardar os direitos dos agricultores e outros trabalhadores rurais”.

Também o uso de pesticidas deve ser mais cauteloso: de acordo com um estudo da Rede de Acção sobre Pesticidas (PAN Europa), 85% das peras e 58% das maçãs colhidas em Portugal continham resíduos de pesticidas do grupo dos “mais prejudiciais”, de acordo com a classificação da Comissão Europeia. Os dados mais recentes da Agência Europeia do Ambiente sobre Portugal mostram que, em 100 locais de monitorização da água, a concentração de pesticidas excedeu os níveis aceitáveis em 12% dos casos, com a situação mais aguda no caso dos grandes rios. Entre os 203 aquíferos subterrâneos monitorizados, 5% excediam os limites recomendados de concentração de pesticidas.

Ainda neste capítulo, o relator especial recomenda ainda que sejam salvaguardados os territórios que são Património Agrícola Mundial – um piscar de olhos, entre outras, à situação já descrita de Covas de Barroso.

Tratamento e distribuição de água

O Governo deve garantir água segura e suficiente, assim como saneamento adequado. Apesar dos bons indicadores de Portugal nesta matéria, é preciso, alerta o relator, tomar “medidas imediatas” para fornecer água potável para as poucas comunidades que ainda carecem deste serviço vital, em particular populações mais vulneráveis como algumas comunidades ciganas.

David Boyd nota ainda que três quartos do uso total de água em Portugal estão destinados a agricultura e pecuária, um consumo agravado em locais como o Algarve e o Alentejo, onde “a agricultura intensiva levanta preocupações extensas”, nomeadamente aquelas que implicam espécies que não são nativas e o cultivo em estufas, que impõem um “grande esforço a recursos de água já escassos”. Os direitos humanos também não ficam esquecidos: não passaram ao lado da ONU os problemas ligados à exploração de imigrantes, exigindo-se contratos dignos, alojamento apropriado e condições de trabalho.

Portugal tem também de investir em infra-estruturas e na manutenção contínua que é necessária para cumprir a directiva europeia relativa ao tratamento de águas residuais urbanas.

Energia renovável e hidrogénio verde

Em matéria de energia, o relator especial alerta que é preciso acelerar o cronograma caso o país queira, de facto, gerar 100% de electricidade a partir de fontes renováveis e iniciar a produção de hidrogénio verde até 2030. A nível do consumo, é também preciso “electrificar os usos finais da energia, incluindo aquecimento, arrefecimento e transportes”. O país precisa também de aumentar os investimentos e incentivos para a eficiência energética, armazenamento de energia, transportes públicos, mobilidade activa e uma “agricultura adaptada ao clima, de precisão, regenerativa, local e orgânica”.

Recomenda-se ao Governo que continue “uma abordagem eficaz baseada em direitos”, tanto a nível nacional como internacional. Isto passa, por exemplo, por facilitar o autoconsumo e a produção descentralizada de energia renovável. “Ao viajar por Portugal, o relator especial ficou surpreendido com a falta de painéis solares nos telhados ou no solo”, lê-se no documento.

A nível internacional, o Governo é incentivado a “contribuir com a sua parte para fundos de mitigação, adaptação e compensação (perdas e danos) de nações vulneráveis às mudanças climáticas e com baixos rendimentos”, e ainda a “renegociar tratados de comércio e investimento, incluindo a Carta Europeia de Energia (Tratado da Carta da Energia), para eliminar disposições de solução de controvérsias entre investidores e Estados, ou retirar-se desses tratados”.

Aplicar efectivamente a lei

Apesar de ter leis robustas, em parte pela influência da União Europeia, Portugal não tem sido tão bom aluno na sua aplicação, somando processos de infracção interpostos pela Comissão Europeia por incumprimento das directivas relacionadas com qualidade do ar, tratamento de águas residuais, eficiência energética e conservação da biodiversidade.

O relator especial insta ainda o Governo português a adoptar uma “abordagem baseada em direitos” para todas as acções climáticas e ambientais, garantindo a protecção de indivíduos e comunidades vulneráveis e marginalizadas e promovendo activamente o direito a um ambiente saudável.

David R. Boyd nota que é preciso tomar medidas para melhorar o acesso à informação ambiental – por exemplo, tornando públicos documentos e dados actualizados – e fortalecer a participação cidadã, promovendo consultas públicas e processos mais abertos. Para facilitar o acesso à justiça, poder-se-ia, por exemplo, considerar a criação de tribunais ambientais especializados e a criação de uma estratégia nacional de protecção de ambientalistas.

Por fim, recomenda-se que as crianças e jovens sejam activamente envolvidos no desenho de políticas públicas, e não apenas na sua aplicação, através da nomeação de representantes para órgãos consultivos nacionais e de delegações nacionais para reuniões e conferências ambientais internacionais.

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