Plano para tratar o lixo em Portugal até 2030 pode falhar por excesso de ambição?

Documento estratégico (PERSU 2030) obriga Portugal a cumprir a meta de 60% de reciclagem de resíduos urbanos. Lipor e Zero consideram a meta “ambiciosa”, uma vez que em 20 anos o país não passou dos 19%.

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Terminou na quinta-feira a consulta pública ao plano que vai determinar, nos próximos oito anos, o destino dado lixo que produzimos José Sena Goulão/Reuters

É muito “ambicioso” o plano que vai determinar, nos próximos oito anos, o destino dado a todo o lixo que produzimos. O adjectivo foi utilizado tanto pela Lipor, empresa intermunicipal de gestão de resíduos, como pela associação ambientalista Zero para qualificar o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU 2030), um documento que vai dar continuidade à política nacional de resíduos. A consulta pública terminou quinta-feira e motivou 32 participações. O PÚBLICO teve acesso a dois desses contributos – o da Lipor e o da Zero –, pareceres que, apesar de convergirem na ideia de que o PERSU 2030 quer fazer muito em pouco tempo, afastam-se noutros pontos.

“O PERSU 2030 em si parece-nos um bom plano, é muito ambicioso. Apresenta Portugal como um país que vai cumprir metas de prevenção e reciclagem. O problema é que estamos muito atrasados no cumprimento desses objectivos e, portanto, achamos que o documento não pormenoriza a estrutura nem os investimentos necessários para tornar esta ambição realidade – e isso gera apreensão”, afirmou ao PÚBLICO Susana Fonseca, vice-presidente da Zero. A ambientalista considera a ambição uma característica positiva, mas acredita que, precisamente porque o desafio é grande, será importante aprender com erros do passado e desbravar novos caminhos. Um exemplo: o PERSU 2030 deveria “desinvestir nos ecopontos” e abraçar com fervor a recolha selectiva porta a porta.

“Os desafios que se colocam à gestão de resíduos em Portugal são enormes, pelo que será necessário compreender que fazer mais do mesmo, ou com pequenos incrementos, nunca nos permitirá chegar a uma meta de 60% de preparação para reutilização e reciclagem dos resíduos urbanos, quando temos como base 19% em 2019, mais de 20 anos desde o início do processo”, lê-se no parecer que a Zero submeteu à consulta pública.

O PERSU 2030 define a prevenção como “objectivo prioritário”, seguido da recolha selectiva. Prevenção, quando se fala de lixo, significa todo o esforço feito para que um objecto não seja deitado fora, quer através da reutilização quer através do prolongamento da vida útil. Tudo para que Portugal possa cumprir a legislação europeia, atingindo até 2035 uma taxa de 65% de reciclagem (cujo cálculo, agora, recai sobre todos os resíduos urbanos) e reduzindo drasticamente o volume depositado em aterro. Dentro de 13 anos, não poderemos enterrar mais do que 10% de tudo aquilo que descartamos.

Na área da prevenção, por exemplo, a Zero sublinha a importância de averiguar o porquê de não ter corrido bem até agora. Havendo uma “ausência de reflexão sobre as razões deste falhanço”, “dificilmente conseguiremos detalhar novas estratégias que permitam ultrapassar obstáculos” até 2030, refere o parecer da Zero.

O contributo enviado pela Lipor, por sua vez, sublinha que é importante que “o papel decisivo” da prevenção “se faça acompanhar dos instrumentos financeiros adequados para operacionalizar as medidas propostas, obtendo o impacto esperado”. Na mesma página do parecer, a empresa intermunicipal descreve os “cenários e metas de prevenção e de preparação para reutilização e reciclagem” como “muito ambiciosos” e, por isso, acredita que “o sucesso depende do envolvimento de toda a cadeia de valor numa lógica sistémica e de inovação, desde o produtor ao consumidor; com instrumentos políticos/económicos e financeiros adequados”. Em resumo, para se alcançar tanto em tão pouco tempo serão necessários meios e o envolvimento de todos – incluindo os cidadãos.

E a queima de lixo?

A Lipor é responsável pela gestão, valorização e tratamento dos resíduos urbanos do Grande Porto e possui uma central de valorização energética que incinera resíduos. Todos os anos, a empresa gere cerca de 500 mil toneladas de resíduos urbanos produzidos por um milhão de habitantes de Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Valongo e Vila do Conde. Para a elaboração do parecer, a Lipor baseou-se em dados de uma análise encomendada ao especialista João de Quinhones Levy, professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa.

Num artigo de opinião, Levy sugeria que fossem “revistas as taxas de captura e de eficiência de tratamento”, que se admitisse “um menor crescimento da produção, mas não valores de produção [de resíduos] inferiores aos actuais” e que as centrais de valorização energética que incineram resíduos não fossem excluídas das soluções. O PERSU 2030 não prevê investimento na queima de lixo, em consonância com a decisão de Bruxelas não financiar novas incineradoras.

“Temos de decidir se queremos desenhar um plano com base num comportamento idílico da população ou com base na realidade”, afirmou ao PÚBLICO Quinhones Levy, que confessa ter pouca expectativa na capacidade de os pareceres submetidos terem impacto no documento final do PERSU 2030. “Tenho mais esperança no actual ministro [do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro] e secretário de Estado [João Galamba] do que nesta consulta pública, pois desde que tomaram posse já fizeram referência à valorização energética. Talvez venha dos decisores a possibilidade de o PERSU reconsiderar esta via [a da incineração com recuperação de energia], disse o professor do IST. Levy acredita que a valorização energética merece investimento, uma vez que o volume de resíduos não vai diminuir de uma hora para a outra e, paralelamente, as centrais actuais estão no limite da capacidade.

Já Susana Fonseca acredita que as duas centrais de valorização energética que existem no continente “têm a sua função”, mas que o PERSU 2030 faz a aposta certa em desinvestir na valorização energética. “As incineradoras não nos ajudam a cumprir a meta [até 2030]. Elas cumprem a sua função, mas não podem aumentar [em número]”, afirma a dirigente da Zero. Para a ambientalista, o caminho a seguir é o da prevenção e, depois, da reciclagem. Para isso, explica Susana Fonseca, “precisamos de parar de culpar os consumidores” e encontrar soluções que tornem a reciclagem mais simples – incluindo a de resíduos biológicos, aos quais o PERSU 2030 também dá atenção.

Recolha de lixo porta a porta

Fazer a recolha à porta das casas, por exemplo, tornaria a separação mais conveniente e eficaz. “Se estamos a pedir às pessoas para separarem os restos de comida, temos de ter consciência que estes resíduos produzem maus cheiros, sobretudo nos meses mais quentes”, alerta Susana Fonseca. Então, para motivar os cidadãos a separarem os resíduos orgânicos do chamado “lixo indiferenciado”, a recolha selectiva não pode exigir que as pessoas se desloquem até aos ecopontos. “Tem de ser porta a porta e realizada regularmente, promovendo também esse contacto [entre quem separa e quem recolhe] – isto também é importante [para a sensibilização]”, afirma a ambientalista.

“O PERSU continua a sugerir uma continuação da aposta em ecopontos, quando já está provado que esta abordagem não funciona para atingir resultados tão ambiciosos. No início, funcionou, mas isso foi há três décadas. Para chegar aos 60%, teremos de apostar na recolha porta a porta. O plano refere esta opção, mas não a trata como a aposta principal”, avalia Susana Fonseca, que considera ainda que o mapa de investimentos “está pouco pormenorizado”, assim como as estratégias de prevenção. Garantir a recolha à porta também abriria caminho para, de forma justa, avançar com chamado sistema PAYT (que premeia quem separa o lixo e penaliza quem ainda não o faz).​

O sistema de recolha selectiva à porta é contemplado no PERSU 2030, mas só em áreas com características populacionais específicas. “Talvez por isso é que se compreenda que o alargamento dos sistemas porta a porta se faça apenas a povoações com mais de 50 000 habitantes. À primeira vista até parece uma excelente medida, que terá como meta 60% dos Municípios abrangidos. Mas a realidade é bem diferente. É que povoações com mais de 50 mil habitantes só temos cerca de 20 e só se pretende chegar a 12 dessas! Portanto, uma parte significativa da população portuguesa ficará excluída”, lê-se no parecer apresentado pela Zero durante o período de consulta pública. O contributo da Lipor também refere a importância da aposta na recolha selectiva, incluindo a modalidade porta a porta.

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