A emergência mental depois da pandemia

A covid-19 veio tornar mais evidente uma outra urgência nacional: a da necessidade de cuidarmos da saúde mental dos mais novos.

Nesta nova era pós-pandemia, importa refletir sobre os múltiplos legados que a covid-19 nos deixa. São tantos, e tão multifacetados, que é impossível discorrer profundamente sobre todos eles nas breves linhas deste artigo. De resto, essa é uma tarefa que, estou certo, será objeto de análise cuidada por parte de cientistas, sociólogos, médicos e decisores políticos ao longo de vários anos.

Desde a validação das vacinas de ARN-mensageiro a uma escala sem precedentes, que abre a porta a conquistas médicas de alcance quase inimaginável, até aos impactos dos confinamentos no percurso escolar e na aprendizagem de milhões de crianças e jovens por todo o mundo, a reflexão deve ser profunda e contribuir para uma melhor preparação perante a possibilidade de futuras pandemias. Trata-se de legados eternos, que requerem uma adaptação que vai muito para além do panic then forget do momento pandémico. Um desses legados é ter agudizado a nossa consciência coletiva acerca da importância da saúde mental, principalmente das crianças e adolescentes, enquanto pilar da sociedade do futuro.

Graças à capacidade de os profissionais de saúde responderem de forma exemplar ao momento que pandémico, ao facto de a comunidade científica se ter mobilizado para responder à emergência e informar a população, e aos esforços das autoridades para gerirem tão eficazmente quanto possível a resposta à pandemia, Portugal soube lidar com a emergência de saúde pública que a covid-19 representou de forma, na minha opinião, muito adequada. No entanto, finda a pandemia, é urgente compreender que outras emergências permanecem, entre as quais a necessidade de os mais jovens poderem aceder a cuidados de saúde mental. Não atuar eficazmente perante a urgência dessa necessidade é comprometer de forma irremediável o nosso futuro coletivo.

Já antes da pandemia, o PÚBLICO dava conta da gravidade de determinadas doenças psiquiátricas nos mais jovens e assinalava a escassez de recursos humanos na área da pedopsiquiatria. Ainda em 2016, o mesmo jornal noticiava a intenção da tutela de aumentar o número de camas para internamento pedopsiquiátrico no país, uma necessidade já na altura bem identificada.

Em 2021 e no início de 2022, em plena pandemia, eram noticiados tempos de espera crescentes para consultas de pedopsiquiatria, enquanto os episódios de urgência desta especialidade praticamente duplicavam relativamente a 2019.

No final de 2022, os tempos de resposta a doentes pedopsiquiátricos prioritários em diversos hospitais excediam os 150 dias definidos como tempo máximo de resposta garantido, e em dois hospitais o tempo de espera dos doentes muito prioritários ia além dos 30 dias.

Num artigo recente, de 28 de fevereiro de 2023, o PÚBLICO atualiza o cenário que, infelizmente, se mantém inaceitavelmente preocupante, com tempos de espera acima dos 200 dias em alguns hospitais, e vagas para internamento dos casos mais graves completamente preenchidas.

Quer isto dizer que crianças e jovens em situações críticas, potencialmente fatais, a necessitar de internamento urgente, têm de ficar numa lista de espera até poderem receber os cuidados especializados de que necessitam, com consequências que podem ser devastadoras. As equipas de profissionais de saúde que trabalham nesta área são habitualmente compostas de pessoas experientes, competentes e dedicadas, conscientes da importância literalmente vital do seu trabalho.

Mas é essencial garantir todas as condições para o recrutamento e formação adequada de equipas multidisciplinares de profissionais de saúde nesta área, bem como investir na criação e manutenção das condições físicas e materiais que permitam a estes profissionais responder sempre da melhor forma às necessidades prementes de um número cada vez maior de adolescentes e pré-adolescentes.

A Rede Nacional de Serviços de Urgência de Psiquiatria da Infância e Adolescência, em vigor desde 3 de fevereiro de 2023, está organizada em urgências regionais e mantém três pontos de atendimento a nível nacional, número considerado “suficiente para cobrir as necessidades do país” pelo coordenador nacional das políticas de saúde mental, Miguel Xavier. Permito-me duvidar que o seja, desde logo se considerarmos a extensão da área geográfica coberta por cada um desses pontos e a crescente procura de cuidados pedopsiquiátricos no país.

Por outro lado, é proposta uma redução no atendimento urgente de pedopsiquiatria, “com o objetivo de reduzir o número de horas de profissionais destinados à urgência para melhorar as respostas programas de ambulatório”. Esta pode até ser uma estratégia apropriada ao momento presente, mas deverá ser sempre encarada como transitória. A tão breve trecho quanto possível, parece-me essencial assegurar simultaneamente um acesso adequado aos cuidados em ambulatório, sem dúvida essenciais, e uma resposta permanente aos casos mais críticos, que necessitam de intervenção urgente.

Perante a emergência pandémica, Portugal logrou atingir o topo da cobertura vacinal a nível mundial. Ninguém duvida de que tal feito se deveu não só à extraordinária adesão da população a esta campanha de vacinação, mas também à forma como o país soube estabelecer uma task force que, de forma expedita e eficaz, permitiu levar às pessoas as vacinas que tantas vidas salvaram. A capacidade de atuar perante uma situação emergente não pode, contudo, ficar por aqui.

A covid-19 veio evidenciar uma outra urgência nacional: a da necessidade de cuidarmos da saúde mental dos mais novos. Está na altura encarar este problema de frente, e atuar perante ele com a eficácia devida. O país tem, uma vez mais, de responder a uma emergência, e não pode falhar. Já mostrou ser capaz de o fazer, tem agora de demonstrar que essa capacidade não foi apenas circunstancial. Em nome das nossas crianças, e em nome do futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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