Igreja Católica, do nojo aos golpes de inspiração

Eu, a achar que estava a fazer algo de especial, como médico, ali há três ou quatro meses, e levei um banho de humildade que me marcará para sempre.

O que temos visto e ouvido a propósito da pedofilia praticada por padres da Igreja Católica vai para além da adjectivação possível. A forma como a instituição minimiza, encobre e na cabeça de alguns sente-se na propriedade de perdoar o crime mais horrendo da humanidade, faz com que a Igreja Católica se comporte como uma organização criminosa, que se não tivesse o salvo-conduto da sociedade no geral, estaria a ser julgada como a máfia. E as únicas manifestações que vejo dos católicos a este propósito é organizar rezas em conjunto. Não serve, não chega, não funciona.

Mas eu não tomo, nem quero tomar o todo pela parte. Embora sendo um não crente, tenho respeito e até admiração profunda pela obra social e humanitária da Igreja, e já agora de tantas outras religiões que num sem número de acções, representam os melhores dos melhores.

O humanitarismo como o conhecemos tem os seus pioneiros no cristianismo. Daí a Cruz Vermelha ter como símbolo uma cruz desde 1863. Sim, sei que a religião foi também uma arma de arremesso para a colonização e submissão de outros povos, mas teve e tem pessoas, espalhadas pelo mundo fora, a fazer obras de um humanismo e de um impacto nas populações mais vulneráveis que me faz arrepiar de inspiração.

Uma vez na República Centro-Africana, no meio da guerra, fiz uma missão exploratória numa aldeia, nos confins do mundo, chamada Niem. Acho que foi o local mais longínquo da civilização onde já estive, e eu já vi muita coisa. Nem o rádio, nem o telefone satélite tinham sinal. Aquelas pessoas, na sua maioria muçulmanas, não tinham nada de nada, e morriam por tudo o que possam imaginar. Eles estavam/estão tão perto da água e da electricidade, como nós estamos de viver em Marte. A única coisa que havia era uma missão católica de italianos.

Tinha uma escola, uma igreja e um hospital. No meio daquela miséria humana era comovente ver o trabalho tão nobre destes missionários desde há 30 anos. Comparado com a envolvência, o hospital era de seis estrelas, gerido por um padre médico, que tratava todos como sabia e podia, e tão bem que o fazia. Arrepiou-me de emoção ver o seu trabalho.

Esta zona era das mais perigosas do país, devastado pela guerra civil. Várias vezes tinha sido varrida por grupos armados, quer cristãos quer muçulmanos, que deixavam para trás um rasto de violência física e sexual de uma brutalidade e animalidade que me faz evitar a sua descrição.

Certo dia estava à conversa com uma das responsáveis, a irmã Daniela, que já com muita idade me explicava um pouco do trabalho deles. Comovente. De uma beleza para além do bonito. E eu perguntei-lhe aquilo que é a primeira coisa que nós, humanitários, aprendemos quando estamos num cenário de guerra: “Irmã Daniela, quando as coisas ‘aquecem’, aqui, em termos de violência, qual é o vosso plano de evacuação?” E ela olhou-me bem nos olhos, calmamente com os olhos claros e húmidos da velhice, e respondeu-me: “Gustavo, eu estou aqui há mais de 25 anos, nós nunca vamos embora, e quanto pior as ‘coisas’ estiverem, mais eles precisam de nós!” E ainda acrescentou: “Jesus veio ao mundo para nos dar amor, e eu vim para aqui para dar todo o amor que Jesus me deu.”

Aquele “nunca vamos embora” ficou-me a ressoar na cabeça até hoje.

Eu fiquei vidrado, congelado e assoberbado por este golpe inesperado de inspiração. Eu, a achar que estava a fazer algo de especial, como médico, ali há três ou quatro meses, e levei um banho de humildade que me marcará para sempre. Acho que nunca na minha vida, tive tanta vontade de ser boa pessoa, de ser melhor pessoa, de fazer o que tem que ser feito com bondade pelo mundo, como naquele momento. E devo isso àquela freira, devo isso à Igreja Católica.

Não há nada mais poderoso do que viver inspirado.

Continuo firme na minha não crença, mas com uma admiração profunda e genuína por todas as benfeitorias do catolicismo, do cristianismo e de todas as outras religiões. E por isso, e tanto mais, não tomo o todo pela parte.

Da mesma forma que penso que quem mais devia criticar o extremismo islâmico são os próprios muçulmanos, acredito que quem mais deveria querer limpar o nojo que se passa na Igreja deveriam ser os próprios católicos.

Os católicos que venham para a rua exigir limpeza geral das maçãs podres, dos que praticaram e dos que esconderam os crimes.

Que se limpem os criminosos e os cúmplices, para que fique só a bondade e a inspiração.

Para todo o sempre, obrigado Irmã Daniela, e obrigado Igreja Católica pelas coisas tão bonitas que fazem pelo mundo.

Foto

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteira

Sugerir correcção
Ler 9 comentários