A primeira palavra que Maria pronunciou não foi “mamã” nem “papá”, mas sim “bolacha”. E o que ela e a avó gostavam de bolachas! “A avó era a sua melhor amiga.” Impacientes e gulosas, faziam da vida uma festa. Quando a avó chegava à casa da menina, “as duas saíam a correr pelo jardim, da cerejeira até ao portão, uma volta ao lago, regressavam ao ponto de partida e depois tudo outra vez”. Sempre acompanhadas de bolachas.
Um dia, a menina foi dar com a avó caída no chão. “O avô disse-lhe que ela tinha tropeçado, mas Maria não acreditou nada naquela história.” E pensou: “Estão a mentir tanto que o nariz deles vai rebentar se continuar a crescer.”
Ela sabia que a avó nunca tropeçava, “nem nas raízes retorcidas do carvalho, nem na pequena cerca, nem nos pedregulhos soltos que ficavam no meio do caminho até ao lago”. Verdade era que tinha mergulhado num sono profundo e vivia agora no hospital.
Maria ia visitá-la e tudo fazia para que ela acordasse. Um dia, acordou, mas estava muito parada e ausente: “Depois daquele sono, a avó esqueceu-se de muitas coisas, como de comer bolachas, de correr, de contar histórias.”
Uma história comovente que finta o leitor, sempre à espera que a avó morra. Afinal, é o avô que parte primeiro. “Maria estava lá quando a mãe o encontrou. Desta vez ninguém precisou de mentir.”
As ilustrações que acompanham esta narrativa já de si comovente e a ampliam são de uma grande candura e ternura. Com pinturas, gravuras e colagens, envolvem o leitor de uma forma plena. E há muitos pormenores para ir explorando, uma e outra vez, em cada página.
Kaatje Vermeire nasceu em Gent (Bélgica) em 1981. Formou-se em Design Gráfico e Publicidade, saberes que a levaram a conhecer o universo das tipografias, da fotografia e das ilustrações. Prosseguiu os estudos explorando várias técnicas, como a gravura em metal e a xilogravura.
Ganhou o Prémio de Melhor Ilustrador Revelação da região flamenga com A Mulher Gigante da Casa 88 (editado no Brasil). Além de ilustradora, faz trabalhos de design, como cartões, convites e pósteres.
A autora do texto, Tine Mortier (n. 1970), é holandesa, ensina escrita criativa e desenha jóias. Escreve para revistas infantis e faz recensões sobre livros de ficção infantil e adulta. Vive na Costa Rica.
Diz sobre si própria: “Sou escritora, mãe de dois filhos fantásticos, uma filha fantástica e mãe de aluguer/responsável/alimentadora de muitos animais. Quando não estou eu a escrever, estou a ensinar outros a escrever. (…) Além disso, sou viciada em viagens, música, teatro, leitura e escrita e outras coisas dramáticas — embora não necessariamente por esta ordem.”
Voltando à Maria, a pequena consegue levar a avó a despedir-se do avô. O que nos proporciona um raro momento num livro ilustrado de uma criança a velar um morto. “À volta do avô estava frio. Tanto frio que até saíam pequenas nuvens de fumo branco da boca de Maria. E também da avó.” Pensou a menina: “É magia. Que bonito.”
Depois de se despedir do marido, que partiu com um sorriso, as palavras da avó quiseram regressar. A primeira que pronunciou foi “bolacha”.
(A escolha deste livro foi motivada pelo tema da edição de aniversário do PÚBLICO, que se assinala a 5 de Março, escolhido pelo nosso director por um dia, o artista e activista chinês Ai Weiwei: a duplicidade da vida e da morte.)