Lucy Jones: “É assustador aceitar que fazemos parte deste mundo”

Em entrevista ao PÚBLICO, Lucy Jones alerta para o “problema de saúde pública” que é uma sociedade desligada da natureza. E questiona: “Como se pode amar e cuidar de algo que não se conhece?”.

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Nascida em Cambridge, em Inglaterra, Lucy Jones é escritora e jornalista freelancer desde 2015 Gemma Brunton

Para perceber a beleza de soprar um dente-de-leão, Lucy Jones teve de bater no fundo e voltar à superfície. Numa altura em que se tentava recuperar a si mesma, foi nos trilhos do espaço verde perto de casa que a jornalista inglesa descobriu o caminho para a sobriedade. Com a capacidade de acalmar o corpo e a alma, rapidamente a natureza se tornou um elemento-chave para a sua recuperação, “tão importante como a psiquiatria, a psicoterapia e os grupos de apoio”, diz ao PÚBLICO, em entrevista feita por videochamada.

Maravilhada com o efeito restaurador que cheirar uma flor ou nadar no rio teve na sua saúde mental, Lucy Jones embarcou numa jornada para tentar perceber a ciência por trás do que lhe mudou a vida. Dando de caras com dezenas de provas científicas de que a psique humana precisa de natureza, concluiu: “Não sou só eu”.

Depois, esta aventura virou livro. Publicado originalmente em 2020, Perder o Paraíso (editora Temas e Debates) está agora traduzido em português e é definido pela autora como uma “síntese das provas mais convincentes” de que a natureza nos faz bem “desde o topo das nossas cabeças até aos dedos dos pés” – e, num planeta assoberbado pelas alterações climáticas, é um lembrete do que estamos em risco de perder.

Perder o Paraíso descreve uma jornada em que a Lucy se descobre a si mesma e ao mundo enquanto tenta investigar a relação entre natureza e saúde mental. O que é que a levou a embarcar nesta aventura?
O meu principal gatilho foi uma época em que estava a recuperar de vários problemas de saúde. Tinha deixado de beber álcool e comecei a ir correr no espaço aberto que estava mais perto de onde eu vivia, em Londres. Passar tempo naquele espaço, que era grande e bonito, com belas plantas ao pé do rio, foi uma coisa poderosa – surpreendentemente poderosa. Para mim, e para a minha recuperação pessoal, aquilo tornou-se tão importante como a psiquiatria, a psicoterapia e os grupos de apoio.

Eu conseguia perceber que, quando regressava ao meu apartamento, o meu cérebro tinha mudado. O meu pensamento era diferente, o meu corpo parecia diferente. Suponho que foi a intensidade e o poder da experiência que me apanharam de surpresa. Isto foi por volta de 2012. Eu tinha uma ideia muito vaga de que estar junto ao mar ou num parque era agradável e sempre gostei muito de animais, mas nunca tinha feito essa ligação entre a nossa psique e o mundo natural. Não me foi receitado, nenhum médico o mencionou, mas mudou a minha vida. E depois, é claro, deparei-me com um enorme campo de cientistas de todo o mundo a estudar o fenómeno, o que me fez pensar "não sou só eu".

Qual foi a descoberta que mais a surpreendeu?
Quando me propus a investigar a ligação entre a saúde mental humana e o mundo vivo, pensei que pudesse haver uma espécie de raciocínio que explicasse, por exemplo, porque é que as pessoas que vivem perto do mar tendem a ter melhor saúde mental ou porque é que as pessoas que têm árvores perto de casa tendem a ter menos receitas médicas para antidepressivos. Mas penso que o que mais me surpreendeu foi a forma como os cientistas estavam a mostrar que esta relação pode afectar o ser humano desde o topo das nossas cabeças até aos dedos dos pés.

Olhei para muitos aspectos e tenho a certeza de que há muitos mais. A natureza tem impacto no sistema nervoso, no cérebro, na diversidade de bactérias a que estamos expostos... E também acontecem coisas que são difíceis de provar num laboratório, como o significado que extraímos das estrelas.

Antes de iniciar esta viagem de investigação, pensava que o contacto com a natureza era uma espécie de luxo: era bom se o pudéssemos ter, mas era uma espécie de suplemento. Algo para os privilegiados. O que descobri através da investigação é que estas experiências que podemos ver como irracionais são na verdade, uma parte importantíssima do que nos torna seres humanos saudáveis. Isso fez-me acreditar que a desigualdade de acesso a ambientes naturais é um problema de saúde pública.

Esta relação entre contacto com a natureza e melhor saúde mental tem alguma componente causa-efeito comprovada?
A minha intenção com o livro era fornecer uma síntese das provas mais convincentes de que ela existe. Estou consciente da minha parcialidade porque tive uma experiência muito pessoal. A saúde mental é tão complexa, é uma constelação de múltiplos factores. Se vive na pobreza e lhe dizem para ir para o bosque, é evidente que isso não vai necessariamente resultar.

Contudo, o volume e a qualidade crescente das provas dão uma imagem inequívoca de que esta relação é forte, rica e multifacetada. Temos agora muitos estudos populacionais que dizem que viver perto de um espaço verde tem uma relação directa com uma melhor saúde mental. Há até estudos com bactérias: há uma que se chama M. vaccae, e os cientistas descobriram que a exposição a esta bactéria específica no solo tem efeitos semelhantes aos da serotonina. Há ainda investigação que diz que “natureza de fundo” – viver perto de árvores, perto de um parque, viver num ambiente natural – tem um efeito na saúde mental de todas as pessoas e não apenas nos obcecados com natureza.

Penso que algumas das conclusões são mais fortes do que outras, mas toda esta manta de retalhos diz-nos que isto deve ser considerado na educação, na saúde pública, no planeamento urbano, na arquitectura. E penso que as pessoas o sabem. Apenas nos esquecemos da nossa ligação com o mundo natural.

Porque é que esta ligação de longa data entre o homem e a natureza não foi mantida se ainda nos sentimos atraídos pelas flores, por exemplo?
Cheguei a falar sobre isso com o biólogo americano Edward Wilson alguns anos antes da sua morte, e ele colocava a hipótese da biofilia. É a ideia de que nós, como qualquer organismo vivo, temos um gene que nos faz ter uma atracção inata pelo mundo vivo. E eu perguntei-lhe: "Será que ele está adormecido? Parece estar”. E ele disse-me que seriam necessárias muitas gerações para que perdêssemos um gene que nos faz amar a natureza e estava muito convencido de que não o conseguiríamos fazer.

Portanto, como é que a ligação não foi mantida? Essa é uma grande questão. Na minha opinião, a causa é esta separação entre ser humano e natureza, alimentada pela industrialização, pelo capitalismo e por ideias de superioridade humana. O consumismo é a religião do nosso tempo e é fácil não ver que, à nossa volta, a abundância e a beleza já existem.

Na obra, fala da forma como as comunidades vulneráveis têm menos acesso a espaços verdes do que os grupos mais privilegiados. As alterações climáticas têm capacidade de aumentar este fosso?
Há muitas formas diferentes de pensar sobre esta questão. Sabemos que, por exemplo, a cobertura dada pelas copas das árvores nas cidades é muito desigual. As zonas mais ricas são mais propensas a ter cobertura arbórea nas grandes cidades, o que significa que têm mais sombra e não têm ilhas de calor urbano, que se estão a tornar uma grande preocupação à medida que o aquecimento global aumenta. As áreas onde as pessoas não têm acesso a esta protecção arbórea – que é também fisicamente protectora – irão exacerbar o acesso desigual aos benefícios de estar na natureza. Ter árvores pode representar uma mudança enorme: são crianças a brincar lá fora, são pessoas a encontrarem-se com os seus vizinhos.

Penso também muito nas comunidades que têm grande ligação com a terra, que caçam e cultivam. Os inuítes [indígenas que habitam regiões árcticas do Canadá, do Alasca e da Gronelândia], por exemplo, usam o gelo como identidade cultural e ele está a derreter! São pessoas que estão na linha da frente do clima e claramente a ser afectadas pelo aquecimento global.

Será esta desconexão do nosso planeta a razão pela qual tantas pessoas vêem as alterações climáticas como uma realidade distante?
Absolutamente! Isso faz-me lembrar uma expressão do escritor americano Robert Pyle, que é "a extinção da experiência". O significado disto é, por exemplo, que os meus avós sabiam os nomes de todas as aves e flores silvestres. Os meus pais sabem talvez metade do que eles sabiam. E, antes de me recomeçar com o mundo natural, eu sabia cerca de 2% do que os meus avós sabiam. Eu não conseguia dizer o nome de nenhum pássaro, nenhuma árvore, nada! E penso que isso é uma tendência. Se não sabemos o que estamos a perder, como é que podemos estar conscientes de que o ambiente está a mudar?

É mais ou menos o mesmo com as mudanças no clima. Passamos cerca de 90 a 95% do nosso tempo dentro de edifícios, no Ocidente industrializado. Portanto, como é que nos apercebemos?

Ao mesmo tempo – pelo menos na minha sociedade em Inglaterra é assim –, há uma ideia de que os humanos estão separados do resto do mundo e de que existe uma hierarquia. É como se houvesse o planeta de um lado e os humanos do outro. É assustador aceitar que fazemos parte deste mundo e que os nossos comportamentos têm um impacto.

Restaurar a ligação com a natureza a nível sistémico pode parar a evolução do problema das alterações climáticas no momento actual?
A minha opinião muda dependendo de quão optimista ou pessimista eu me sinto. Acho que a única forma de curar a relação disfuncional que as nossas sociedades industriais têm com a terra é ao renová-la com base no respeito, na bondade e no amor.

Eu hesito em falar do mundo natural como um local onde as pessoas vão pela sua saúde mental de uma forma utilitária, mas, se ao menos reconhecêssemos como é bom para nós estar em ambientes naturais saudáveis – que não sejam poluídos, barulhentos, ou dominados por carros –, essa ligação emocional poderia mudar as coisas.

Outra coisa importante é a educação e dar às crianças a oportunidade de conhecer a natureza, brincar lá fora, de desfrutarem e se maravilharem com o mundo natural. Isto é fundamental, porque elas vão herdar a Terra muito em breve. E como se pode amar e cuidar de algo que não se conhece?

Encontrou inúmeros projectos que queriam melhorar a saúde humana através de ambientes naturais que resultaram. Politicamente, em que ponto nos encontramos no reconhecimento e adaptação das sociedades face a esta ideia?
Há aqui um lado económico: em Inglaterra, tentaram quantificar a natureza, com o termo "capital natural". Os argumentos comerciais a favor da natureza estão a ser feitos e as provas estão a ficar mais fortes e a fazer com que isto crie políticas. Acho que a compreensão da necessidade de ambientes naturais para uma boa saúde mental está a aumentar.

Talvez a pandemia também tenha tido impacto. É difícil dizer que uma coisa boa pode ter resultado de um capítulo tão horrível da história, mas penso que mostrou como é desumano as pessoas viverem em habitações sociais no vigésimo andar sem acesso a um jardim.

Sinto-me bastante optimista e acho que há aqui uma dinâmica que está a crescer. A peça que falta, atrevo-me a dizer, é o tempo. Estamos lentamente a perceber que o contacto com a natureza não é um luxo e é tão importante como uma dieta saudável ou uma boa noite de sono.

Quando confinadas no início da pandemia, as pessoas procuraram outras formas de aceder à natureza.
Durante a quarentena, por exemplo, podíamos fazer passeios diários durante um tempo limitado e as pessoas iam muito a parques. Parecia que, pela primeira vez em algum tempo, todos se estavam a reconectar com a natureza. Toda a gente andava a comprar plantas, os meus vizinhos cultivavam coisas no jardim. Ainda temos de descobrir se isto foi só uma moda ou se a tendência se vai manter.

Acho que uma das coisas fundamentais em relação a passar mais tempo ao ar livre ou querer fazê-lo no contexto de uma pandemia é que é simplesmente mais interessante. Sim, todos nós temos ecrãs e as pessoas estavam até a fazer pão, mas sair e ver uma árvore, um rio, soprar um dente-de-leão e ver coisas vivas é melhor. O cérebro quer fazer padrões, descobrir e explorar, e isso é fácil de fazer num ambiente vivo. Durante a quarentena, só queríamos ir lá para fora porque estávamos aborrecidos.

Há um estudo no meu livro que achei interessante. Fala sobre recém-nascidos e como eles respondem a uma galinha em movimento e os bebés queriam ver a galinha, em vez de algo que estava parado. E é tão óbvio que eles fariam isso! É isto que se passa no mundo natural: vemo-lo como algo normal e óbvio.

Ao longo do livro, refere-se frequentemente às comunidades indígenas e tradicionais. O que podemos aprender com elas?
Eu aprendi muito ao ler o livro de Robin Kimmerer Braiding Sweetgrass [Entrançar erva-doce, numa tradução livre. O livro não tem uma versão portuguesa oficial], particularmente sobre gratidão e sobre a ideia de que tudo o que comemos, bebemos e respiramos é um presente da terra. Para mim, isto foi surpreendente. É tão óbvio que estamos todos em ligação com a natureza porque tudo o que comemos vem das plantas! Pensamos que estamos desligados do mundo natural, mas só estamos vivos por causa dele.

Essa atitude de gratidão é tão importante. Quando estou numa refeição com os meus filhos – e eu sei que isto parece um pouco estúpido –, costumamos agradecer por tudo o que está no nosso prato. Agradecemos ao sol, à água e aos agricultores que cultivam os alimentos. Há muitos problemas com a agricultura intensiva e a monocultura, mas, plantando eu própria algumas coisas e compreendendo como é difícil, sinto-me muito grata pelas pessoas que cultivam alimentos.

Outra coisa que podíamos aprender é a ter equilíbrio. Parece-me que, nos sistemas de conhecimento tradicionais – e não sou, de modo algum, especialista nisto –, existe uma forma de pensar ampla e muito sensata que se baseia em não tirar demasiado à natureza, mas apenas o que é necessário para não a arrebatar. E não é isso que estamos a seguir.

Num mundo mais consciente do impacto das alterações climáticas e da importância da saúde mental, podemos dizer com certeza que ainda há esperança?
Ouvi no outro dia uma coisa que me ficou na cabeça: pontos de ruptura positivos. Quando pensamos em pontos de ruptura climática, isso é mau. Mas há um escritor, Merlin Sheldrake, que diz que os pontos de ruptura positivos podem acontecer e muito rapidamente. A mudança positiva consegue ser rápida e eu nunca tinha pensado nisso. Se as pessoas quiserem, é possível que o futuro seja diferente.

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