Se de cada vez que uma Keyla Brasil invadisse um palco

Nunca tivemos tanta liberdade enquanto artistas e nunca fomos tão conscientes da castração que provocamos aos 99% que não a têm.

“A liberdade nunca será oferecida voluntariamente pelo opressor, tem de ser exigida pelo oprimido”, escreveu Martin Luther King a 13 de abril de 1963 na prisão de Birmingham. Filha de Abril, com a mesma idade da democracia portuguesa, e habituada a uma família em que todos os temas se discutem aos gritos como se fosse a última chance de mudar o mundo, cresci incomodada com a ideia de viver numa sociedade que se define como livre, mas ainda precisa de pegar fogo a carros, partir montras ou fechar escolas para se fazer ouvir.

Sessenta anos depois de Mr. King escrever esta frase citada amiúde, não chega denunciar, não chega fazer greve, não chega morrer de fome, nem ser baleado. Habituámo-nos a conviver com a barbárie e se tivermos oportunidade mais depressa nos juntamos ao opressor do que ao oprimido. Ou então convocamos a arte para intervir no presente e ensaiar outras possibilidades. Murais na rua, happenings frente a embaixadas, tartes atiradas à cara de executivos da Goldman Sachs ou Pussy Riots em catedrais sempre foram a casca de banana que nos fez escorregar e perceber que o chão que pisamos não é todo igual. Tem falhas, buracos, arestas por limar. A imaginação sempre foi um poderoso cúmplice dos que não têm lugar para intervir na realidade.

Que seja a realidade a intervir no teatro e a propor outras possibilidades de atuar deveria obrigar-nos a questionar:

Porque ocupamos o palco? E para quem? Com que objetivos? Gratificação pessoal? Confirmação de um statu quo? Para contribuir para um mundo melhor?

Entretenho com regularidade a ideia de que o teatro e a arte podem fazer a diferença (último gesto romântico de alguém que se debate, e muito, com a profissão).

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Keyla Brasil no palco do São Luiz

Muitas vezes penso:

E se, de cada vez que um príncipe beijasse uma princesa num palco, alguém subisse ao palco para dizer que ninguém acorda com um beijo e se fizesse luz nas adolescentes na plateia?

E se, de cada vez que um cowboy matasse um índio numa tela de cinema, um índio insultasse o filme e gritasse american fake!?

E se, de cada vez que um branco pintasse a cara de preto para fazer de “Zwart Piet” ao lado do bispo S. Nicolau numa festa de uma escola belga, uma mãe gritasse: Black Lives Matter!?

E se, de cada vez que um galã de cinema fizesse um reparo inapropriado ao corpo de uma mulher, uma multidão de mulheres queimasse sutiãs à sua porta?

E se, de cada vez que um espetáculo sobre refugiados protagonizado por atores célebres com roupa de marca fosse interrompido por um sem-abrigo que habitualmente dorme do outro lado da sala desse teatro nacional, aqueles fossem esclarecidos sobre alguns detalhes das suas atuações?

E se alguém com deficiência entrasse em palco não para ser encenado, mas para encenar um coreógrafo convidado?

E se, de cada vez que um museu mostrasse uma nova coleção com objetos ritualísticos, um xamã aparecesse na vernissage e afirmasse: “Esse totem é meu!”

E se, de cada vez que uma personagem numa peça que sugere que há beleza em matar fascistas fizesse um discurso final, homofóbico e racista, muito semelhante ao de um partido de extrema-direita no poder, o público, ao invés de representar muito bem o seu papel de indignado (e de uns para os outros), insultando o ator, saísse a correr para ir falar com aqueles de quem verdadeiramente discorda?

E se, de cada vez que um Almada subisse ao palco de um Teatro São Luiz para ler um Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, um público pateasse com a veemência com que o público de 1917 o pateou?

E se, de cada vez que um espetáculo que afirma na sua sinopse que é sobre “ser mulher (periférica ou não, racializada ou não, cis ou transgénero)” tivesse duas personagens trans na ficha técnica e uma delas fosse representada por um ator masculino e cis por “falta de recursos económicos”, uma Keyla Brasil invadisse o palco e dissesse: “Por favor, eu só preciso de três minutos para falar com vocês! Este espetáculo não está defendendo a nossa causa, ele está excluindo!” E nós, na plateia...

Keyla Brasil fintou-nos no passado dia 19 de janeiro no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, quando interrompeu o espectáulo Tudo sobre a Minha Mãe. Porque não era ela que ia nua (ou seminua, como se escreveu no Expresso), mas nós, Reis, classe instruída e com voz, que estávamos nus. E até sabíamos – porque sentimos frio.

Somos Reis que lecionam sobre direitos civis e seguem agendas que estão na ordem do dia, mas chegamos a casa e batemos na mulher, insultamos o colega de trabalho, roubamos-lhe o lugar. Mentimos, omitimos, ofendemo-nos, quando alguém nos denuncia e tentamos a todo o custo ser os primeiros a chegar a um lugar de poder onde possamos mandar nos outros, só para que ninguém mande em nós, nem nos volte a humilhar, a violentar, a desrespeitar.

Se de cada vez que alguém invadisse um palco as cortinas não descessem, nem o seu discurso fosse interrompido para pedir ao público para abandonar a sala e reaver o dinheiro do seu bilhete, mas, ao invés, os técnicos ligassem os holofotes, para que pudéssemos ficar a ouvir o que raramente ouvimos do nosso lugar de privilégio, nós aqueceríamos. O teatro seria um lugar transformador, uma máquina de pensar e produzir perigosos diálogos com a multiplicidade que somos (dentro e fora de cena), capaz de incomodar e de virar do avesso vidas, uma e outra e outra vez.

O teatro é teatro sobretudo quando não é sobre teatro e quando não é só teatro, mas quando choca de frente com a vida e até se atreve a incomodar a realidade. A passada, a presente e a que há de vir!

Vivemos tempos de grande exigência, que nos obrigam a tomar posição a todo o momento, mesmo correndo o risco de nos espatifarmos vezes sem conta.

Nunca tivemos tanta liberdade enquanto artistas e nunca fomos tão conscientes da castração que provocamos aos 99% que não a têm. É tempo de opressor e oprimido se aliarem, sem braços de ferro, sem ajustes de contas, sem vencedores nem vencidos, como verdadeiros e consequentes aliados.

Quando esse teatro habitar os palcos do mundo, a frase de Martin Luther King adormece, descansada, sobre o papel da carta a que pertence, sabendo que fez sentido ter sido escrita e citada vezes sem conta para deixar de ser verdade.


A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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