A realidade e a ideia ficcionada da realidade

Um governo que quer afirmar-se de esquerda democrática devia ser um exemplo da ética (nem republicana nem monárquica, apenas ética) e tomar medidas que garantam a sustentabilidade do território.

Já aqui há dias numa nota curta saída neste mesmo jornal apontei o dedo a uma grande confusão e desnorte que grassam num Governo arrogantemente empossado com uma maioria absoluta no Parlamento e volto a interrogar se o dr. António Costa terá percepção do mal que está a fazer à democracia, à política e aos políticos, com tanta desfaçatez, umas atrás das outras. E ao que parece as trapalhadas vão continuar…

Parafraseando o filósofo Michel Onfray, dir-se-á que, para pessoas como o sr. primeiro-ministro, a ideia que ele faz da realidade que lhe agrada é mais real do que a própria realidade. Um governo que quer afirmar-se de esquerda democrática devia ser um exemplo da ética (nem republicana nem monárquica, apenas ética) e no empenho da tomada de medidas de médio e longo prazo que garantam a sustentabilidade do nosso território. Governar à vista tem dado para ter as contas certas, mas não garante, por falta dessas medidas sérias, a perenidade dos sectores fundamentais dum território de condição mediterrânica e sob ameaça de graves alterações climáticas.

Agora foi-se a secretária de Estado da Agricultura e lamenta-se que não tenha levado com ela a ministra. Embora o problema seja mais das políticas do que das pessoas, há-de ser cada vez mais difícil ao sr. primeiro-ministro recrutar técnicos competentes, nomeadamente para este sector, pois um agrónomo que seja conhecedor e sério não aceita tutelar uma pasta em que o sector agrário não esteja completo, com agricultura e silvicultura; e não é pelo facto de a CAP criticar a política agrícola que ela deixa de ser criticável.

Já vezes sem conta elaborei um historial do descalabro consciente que tem sido aplicado pelos últimos governos, mas tudo começou com o dr. António Costa como ministro da Administração Interna que, certamente apoiado pelo ministro da Agricultura de então - um dos piores, se não o pior do regime democrático -, desmantelou os Serviços Florestais e enviou os guardas florestais para a GNR, acabando com uma estrutura que defendia o país das catástrofes dos incêndios e com uma classe profissional que prestava os mais estimáveis serviços desde o século XIX. E daí em diante tem sido o desabar das verdadeiras políticas agro-florestais como tem sido o desmantelar de toda a estrutura de política ambiental, simbolizada com as Áreas Protegidas ao abandono (visitem os Parques e Reservas Naturais e perguntem pelo seu património para verem em que estado se encontra). Ganham a agro-indústria e a indústria da celulose…

Para tutelar estes sectores, na situação em que estão, seriam precisos profissionais competentes, mas esses são difíceis de recrutar. Servem então políticos que querem subir na escala social e ganhar protagonismo - triste mentalidade, que tem vindo ao de cima com a pouca-vergonha das nomeações e demissões deste Governo.

Reconhece-se sem esforço as dificuldades que foram o enfrentar da pandemia e as consequências que essa revolta da Natureza tem e terá para os humanos bem como logo a seguir a gravidade duma guerra suja e iníqua em plena Europa que altera todos os quadros normais da economia. Mas tudo isso teriam de ser estímulos para um governo socialista democrático se empenhar nas políticas mais sérias, e não apenas nas medidas de terra à vista.

Adoptadas medidas de carácter assistencialista, como a ajuda aos “humilhados e ofendidos” por estas crises, o socorro aos que estão a sofrer, reparar injustiças, exaltar os valores da democracia e da liberdade - é o que menos custa, são aspectos que ornamentam qualquer Estado, mas não desculpam, por exemplo, a falta da reposição dos sectores primário e ambiental como estratégia estrutural do país.

Sub-repticiamente vão passando ao lado resoluções do Conselho de Ministros como que a atirar barro à parede a ver se pegam; sob a capa da descentralização tentaram a colocação dos professores, mas esta prestigiada e até aqui desconsiderada classe reagiu com vigor; já as competências municipalizadas de políticas nacionais como devem ser a agricultura e o ambiente ainda não provocam as mesmas reacções, porque há um desinteresse generalizado quer de muitos dos profissionais, que preferem ficar calados, quer da opinião publica que não está motivada e informada para ser massa crítica.

E assim vamos caminhando na cauda da Europa - triste destino…

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